Sicupira, Lemann e Telles: vítimas das "inconsistências" das Americanas? Foto / 3gCapital/Reprodução

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

Longe de mim querer atiçar os ânimos e provocar uma luta de classes no país –se é que ela já não existe. Mas você haverá de concordar comigo: parece que nós temos um dicionário da língua portuguesa para os ricos e privilegiados, enquanto os pobres e prejudicados usam um outro.

Esta constatação ficou fazendo círculos na minha cabeça desde que li a elegante nota à imprensa enviada pelo então CEO das Lojas Americanas, Sergio Rial, ao pular da arapuca em que se meteu. Parecia uma espécie de agradecimento a todos, uma série de palavras gentis, para, no final, o brevíssimo executivo informar que encontrou “inconsistências contábeis” no valor estimado de R$ 20 bilhões nas contas da gigante do varejo.

Apesar de parecer notícia de coluna social, o assunto incendiou o país, a começar pela Bolsa de Valores de São Paulo, a famosa Bovespa. Depois, vieram depoimentos desesperados de algumas das 140 mil pessoas físicas que investiam em ações das Americanas e que viram, da noite para o dia, seu dinheiro virar pó.

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Em seguida, trabalhadores e seus sindicatos botaram a boca no trombone, preocupados com a manutenção dos 100 mil empregos diretos e indiretos colocados em risco. Por fim, sem entender direito o que a tragédia iria mudar em suas vidas, ficaram os cerca de 50 milhões de clientes das 3.600 lojas das Americanas no país.

Quase ao mesmo tempo, a imprensa foi atrás dos mega-investidores que são os principais donos do empreendimento, pois são seus maiores acionistas. Jorge Paulo Lemann, Marcel Herrmann Telles e Carlos Alberto Sicupira, cujas fortunas somam mais de R$ 185 bilhões, são simplesmente os cidadãos mais ricos do país. Entre outras coisinhas, também são donos da Ambev, uma das maiores cervejarias do mundo.

Porém, quem leu as primeiras notícias sobre a quebra das Americanas, e repercutiu o assunto com os seus três sócios bilionários, quase chorou de pena dos coitadinhos, como se eles estivessem entre as vítimas das tais “inconsistências”. Ora essa, podem não ter planejado isso, mas foram no mínimo incompetentes –eu disse no mínimo– porque não fizeram o básico dever de casa de acompanhar e fiscalizar a gestão da empresa, que declarou uma dívida de R$ 43 bilhões ao conseguir sua recuperação fiscal na Justiça.

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No lado pobre…

Imagine você, caro leitor, se algo parecido acontecesse com o lado pobre da sociedade… Meu Deus, dá até vontade de rir e chorar ao mesmo tempo ao imaginar uma coisa dessas. Primeiro, que o assunto seria tratado imediatamente como notícia policial. A imprensa correria atrás do empresário pelas ruas e o trataria, no mínimo, por caloteiro. E se o tal empresário em maus lençóis falasse em “inconsistências contábeis”, o país inteiro responderia “no popular”:

– O safado aplicou um golpe!

Essa diferença de tratamento me causa profunda decepção quando penso em democracia, igualdade, liberdade, cidadania, classes sociais, coisas assim. É triste ver como a própria sociedade se acostumou a separar os homens entre empreendedores sem sorte de um lado e, do outro, meros ladrões de galinha.

O caso Americanas não é único, é apenas o mais atual. Ficando apenas no varejo brasileiro, quem não se lembra do mega-especulador Ricardo Mansur, que conseguiu a proeza de, no final do século passado, quebrar quase ao mesmo tempo as gigantes Mappin e Mesbla? Mansur deixou uma dívida estimada em R$ 1,2 bilhão, 9 mil pessoas desempregadas e fugiu em direção à Europa. Os exemplos são inúmeros. Vasp, Varig, TV Tupi, TV Manchete, Banco Santos…

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Mas o maior exemplo de tratamento desigual entre ricos e pobres quando se trata de problemas financeiros, é o carimbo que o pobre recebe quando tem uma dívida não paga:

– O Zé tá com o nome sujo no Serasa! –disparam.

O pior é que o próprio José, sua família, os amigos, o dono do boteco que ele frequenta, todos aceitam normalmente o tratamento cruel e desrespeitoso: nome sujo, na lista dos maus pagadores, caloteiro.

Se o mesmo acontece com as classes média, alta e altíssima, aí muda tudo. Já não existe nome sujo, deixa de ser calote, deixa de ser golpe, para o caso ser visto como um simples contratempo:

– O Dudu está inadimplente, acredita? –diz a mulher para a amiga, como se estivesse contando uma espécie de piadinha de salão.

Depois de pensar muito neste assunto, volto à minha insignificância habitual, certo de que nada vai mudar na questão da igualdade entre os cidadãos, tão valorizada lá na Revolução Francesa. Afinal, só um maluco poderia imaginar o sujeito passando pela rua com seu terno caríssimo, seus sapatos de cromo alemão, seu Rolex no pulso, e um gaiato gritar:

– Lá vai o pilantra do Lemann que quebrou as Americanas!

 

> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 46 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

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