Destruição causada pelas chuvas em São Sebastião. Foto / Rovena Rosa/Agência Brasil

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

Em São Sebastião do Rio de Janeiro as escolas de samba desceram os morros para desfilar na avenida. Em São Sebastião do litoral norte de São Paulo a lama desabou dos morros para soterrar a alegria.

Tão logo a tragédia estava concluída, os governantes também desceram as serras do jeito que puderam. E longe de mim criticá-los por isso. Antes tarde do que mais tarde. A presença de todos é essencial diante da calamidade. Tomara Deus que os discursos compungidos se tornem realidade. Que aproveitem a desocupação já realizada sem dó pela natureza, que tudo varreu sem pedir CPF ou verificar renda familiar, reduzindo o índice de habitantes e de moradias e, então, realmente, encontrem locais seguros para acomodar as famílias.

Seiscentos milímetros de chuva em 24 horas foram os números mais ouvidos desde que a tragédia se deu e, com certeza, esses números serão o acalanto do sono de muita gente, talvez para o resto da vida. Mas se for olhar direitinho, São Pedro não pode ficar com a culpa toda. É preciso considerar o fato de que órgãos responsáveis por proteger a população foram avisados dois dias antes por especialistas de que o volume de chuva seria fora do comum. Mesmo assim, ao que tudo indica, apenas mensagens foram disparadas para poucas dezenas de pessoas com um alerta de chuvas.

PUBLICIDADE

Não se tem notícia de ações para remover as pessoas preventivamente. E qual seria o motivo dessa falta de ações? O Carnaval em curso ou o descrédito na ciência meteorológica? O descrédito na ciência em geral?

Até quando os governantes do país seguirão negligenciando medidas preventivas rigorosas contra alagamentos e desmoronamentos? Até quando se permitirá a ocupação de áreas de risco sem fiscalização? Quando será que dinheiro público será utilizado de fato para cuidar prioritariamente da coisa pública? Até quando corpos de crianças serão desenterrados dos escombros de suas moradias para serem enterrados, às vezes, sem a presença de seus pais por estarem também mortos ou hospitalizados?

E a coisa toda é tão complexa que você que lê este texto pode achar que a sequência dele não tem a ver com o assunto, mas pense um pouco a respeito e talvez concorde que tudo está ligado. Pois neste Carnaval, mais do que nunca, a desigualdade foi porta-bandeira nota 10 a rodopiar faceira com o estandarte da miséria. As alegorias se apresentaram em diversas situações pelo país disputando atenção e entoando o enredo da desigualdade.

Reza a lenda que Gisele Bündchen ganhou cachê de dois milhões de dólares para passar poucas horas no camarote de uma marca de cerveja na Sapucaí. Um repórter chorou durante a reportagem em São Sebastião ao descobrir que um comerciante era capaz de cobrar 93 reais por um litro de água, justificando com a escassez. Quando o tempo permitiu, o voo de helicóptero estaria custando a bagatela de 30 mil reais para retirar turistas abonados das áreas de risco do litoral norte de São Paulo.

Assim que a chuva deu trégua, as postagens nas redes sociais se alternavam do céu ao inferno, como um jogo de amarelinha macabro. Na mesma região, os posts traziam fotos de pessoas no litoral em praias onde havia água limpa e sol e outras destruídas pela lama, com veículos amontoados dentro do mar, além de casas destruídas e pessoas soterradas. Até isso.

PUBLICIDADE

Como o ditado diz que desgraça pouca é bobagem, logo circulou a notícia de que estava havendo saques a caminhões de transporte de doações para os desabrigados; informação dada pelo próprio governador.

No país da falta histórica de investimento em educação, segurança, saúde, saneamento e prevenção de todo tipo; onde você pode até comprar um celular, mas não pode usá-lo na rua com receio –ou certeza– de ser roubado; onde prevalece a lei do mais forte, do mais esperto, do mais endinheirado, que esperança pode haver de futuro?

Entenda, não tenho nada contra uma übermodel ganhar milhões em meia hora para vender cerveja. Mas é muita cerveja vendida para compensar tamanho investimento em publicidade em um único evento e é você que bebe a cerveja que paga o cachê da Gisele. Seria o caso então de se perguntar para onde vai o imposto da cerveja e o que é feito com ele.

Talvez se esses impostos –não só da cerveja, é claro– fossem bem fiscalizados, mais escolas e moradias pudessem ser feitas e regiões de risco nos morros de Petrópolis, Angra dos Reis e São Sebastião não seriam ocupadas e não virariam cenários de tragédias em tantos Carnavais.

O Carnaval de 2023 provavelmente será um dos mais históricos e inesquecíveis do país, e não pela euforia da retomada da festa, após dois anos de covid-19, mas pelas tragédias. E não é culpa do demo; não mesmo. O mal acontece porque os homens depositam confiança em outros homens e não os vigiam.

Em vez disso, se contentam em aproveitar dias de sol e cerveja, enquanto esperam que a mudança caia do céu. Mas do céu só cai mesmo é chuva. E dependendo da quantidade, ela mata. E não só a chuva mata, mas também a desigualdade, a indiferença e a histórica ganância política desse país com o futuro cada vez mais distante.

 

> Maria D’Arc é jornalista (MTb nº 23.310) há 28 anos, pós-graduada em Comunicação Empresarial. Mora na região sudeste de São José dos Campos. É autora do blog recortesurbanos.com.br.

PUBLICIDADE