Ilustração / O Monarquista / Reprodução

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

Não gosto de repetir temas aqui nessas crônicas/artigos que cometo no SuperBairro, mas desta vez acho que não tem como não tocar novamente nesse tema espinhoso: a exploração do homem pelo homem no trabalho. Refiro-me à condição análoga à escravidão, nome pomposo para definir a velha e sórdida escravidão que existe desde que o mundo é mundo.

Na crônica anterior sobre este assunto, critiquei o caso da escravização de mais de 200 pessoas que trabalhavam nos parreirais de vinícolas famosas de lá do Rio Grande do Sul. Até cometi um engano ao colocar no título “Como beber do ‘vinho tinto de sangue’ lá de Caxias do Sul?”, quando os crimes foram cometidos em Bento Gonçalves, embora tenham sido denunciados às autoridades de Caxias do Sul. Fica aqui a retificação, embora, como se dizia antigamente, seja tudo vinho da mesma pipa.

Se o problema ficasse restrito ao caso dos gaúchos, com o pessoal punido e os escravos indenizados, tudo bem, bola pra frente. Mas aí vem um vereador lá da Caxias do vinho da mesma pipa e encarna um “hitlerzinho” para regurgitar asneiras sobre asneiras, caprichando no discurso racista e xenófobo contra o povo nordestino. Pau no edil, como se chamava o vereador antigamente. E bola pra frente? Só que não…

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A partir do caso de Bento Gonçalves, como numa reação em cadeia, começaram a explodir descobertas de casos de escravização em uma sequência nunca antes vista. Foram os escravizados do arroz, da cana-de-açúcar, da laranja e, pasmem, do cigarro!

É isto mesmo, do cigarro. Na última segunda-feira, dia 20, a Polícia Federal libertou 19 paraguaios que trabalhavam em uma fábrica de cigarros clandestina, em condições análogas à escravidão, no município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Chamada de Operação Libertatis –belo nome–, a operação apurou que os paraguaios chegaram ao Brasil de olhos vendados e não sabiam sequer em que cidade estavam.

Tudo isso me fez lembrar de um tempo em que, para fugir do tédio de não ter tempo para viajar devido ao excesso de trabalho, eu às vezes ia para cidades vizinhas e quase sempre parava em um ou dois postos de gasolina para comer um sanduíche e tomar uma cerveja –antes podia! Foi quando tomei contato com uma espécie de “escravidão light”, mais odiosa ainda que a “escravização raiz”. Ouvi várias histórias de “funcionários” daqueles bares à beira da Dutra que haviam sido “raptados” quase da mesma maneira.

Funcionava assim. O intermediário ia até cidadezinhas minúsculas e inviáveis do sul do país, especialmente do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, recrutavam gente sem nenhuma especialização e lhes davam a ilusória esperança de trabalhar entre São Paulo e o Rio de Janeiro, onde, talvez dissessem, o dinheiro corre a céu aberto. E lá vinham os otários, na carroceria de caminhões ou de qualquer outro jeito.

Ao chegarem à “nova Canaã”, percebiam a realidade. Eram colocados em alojamentos precários atrás dos restaurantes, de onde praticamente só saíam para trabalhar. Soube de gente que precisava de autorização para conhecer a cidade mais próxima, no caso, Caçapava ou Jacareí. Soube de gente que planejou e fugiu do alojamento de madrugada tomando o rumo da liberdade.

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Caro leitor/leitora, isso acontecia –ou talvez ainda aconteça– debaixo dos nossos olhos, com gente que nos atende, nos serve café, abre a nossa cerveja, traz o nosso salgadinho… Lembro-me de um desses “barmen” que me chamou atenção porque tinha dificuldade em pegar os copos e levar aos clientes. Foi quando vi as mãos do quase menino, elas eram tomadas por calos e pequenas deformidades. Puxei conversa e o rapaz me revelou que havia chegado dias atrás de um desses lugarejos do Sul, de onde foi tirado diretamente da roça, onde sua “especialidade” era pegar no cabo da enxada.

Você vai dizer: essas quadrilhas de escravizadores são formadas por bandidos com cara de maus, gente procurada pela Justiça, gente que vive em esconderijos. Que nada. No caso dos “escravos da Dutra”, em muitos casos os escravizadores eram até mesmo parentes dos escravizados, ou conhecidos que moravam no mesmo vilarejo.

É claro que sempre tem gente para fazer o trabalho mais sujo que o já sujíssimo trabalho de escravizar gente. São os “capitães do mato”, que desde sempre no Brasil são encarregados de capturar e levar as vítimas para seus patrões. No início, eram os indígenas, escravizados pelos Bandeirantes dos quais os paulistas tanto se orgulham; depois foram os negros que fugiam de seus senhores e eram recapturados caso não conseguissem chegar a um quilombo seguro; hoje, são os miseráveis cujas famílias passam fome nos grotões do país, ou gente sofrida de países vizinhos, como Bolívia e Paraguai.

Na verdade, esses capitães do mato também são vítimas –embora criminosos– dos verdadeiros escravizadores, que não usam armas, vestem-se bem, têm boas casas, bons carros, boas contas bancárias e não sujam as mãos diretamente com o sangue e a alma dos seus escravos.

Ao final deste texto, cabem duas ideias para sua reflexão. A primeira: será que algum dia a Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel lá em 13 de maio de 1888, resolveu o problema da escravidão no Brasil? A segunda: até quando esta gente que comete o hediondo crime de escravizar seres humanos vai ficar praticamente impune quando pega com a boca na botija, alegar que não sabia de nada –tudo culpa dos seus capitães do mato, certo?–, separar um dinheiro de pinga de suas fortunas para indenizar as vítimas e continuar posando de gente civilizada e honesta?

Fique de olho. Os escravizadores modernos podem estar muito perto de você.

 

> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 46 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 22 anos.

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