Vou logo avisando que este não é um espaço para obituários. Mas, ao final do texto, tenho certeza de que você vai compreender o porquê desta homenagem. Morreu ontem, aqui em São José dos Campos, o meu amigo, colega, conselheiro, incentivador, meu “padrinho” Flávio Nery.
Se a minha vida não tivesse se cruzado com a do Flávio, talvez eu nem fosse jornalista. Explico rapidamente. Em meados do distante ano de 1975, eu visitava meus pais e irmãos, que já moravam há cerca de um ano em Caçapava, quando vi, colado em um poste na velha e linda praça da Bandeira, o “coração” da cidade, um cartazete anunciando: “Pop News vem aí!”.
“Pop News”, adaptado do nome de uma “pesquisa de opinião pública” –daí o Pop– que o agitado empreendedor José Flávio de Araújo Pierre realizava anualmente para apontar as empresas que se destacavam, era o nome do jornal que começaria a circular na “cidade simpatia”, como ela é conhecida.
Eu até escrevia direitinho, até lia bastante, mas trabalhava com captação de publicidade em um jornal na região do ABC, onde fiquei morando com meus avós no “b”, São Bernardo do Campo. Nunca havia passado pela minha cabeça ser jornalista, era muito pra mim. Até que conheci o Flávio Nery.
Entrei na equipe, ainda na área de publicidade, mas logo estava participando das intermináveis conversas sobre política e jornalismo com aquele autodidata, assim como eu, que se vestia com apuro, camisas de seda, calças sociais, e tinha sempre uma história ou comentário polêmico a fazer. Quando o jornalzinho começou a circular, em outubro daquele ano, eu já havia “assumido” uma coluna com notinhas sobre fatos da cidade. E daí em diante a minha carreira e a do Flávio Nery correram paralelas –até que ele deslanchou e se descolou.
Pronto, chega de falar de mim. A partir da agora, vou lembrar a trajetória de um dos mais importantes jornalistas que a região do Vale do Paraíba já conheceu. Após a chamada “vida efêmera” do “Pop News”, que já havia se transformado em “Vale News” com circulação em outras cidades, o inquieto Nery participou da revolução na imprensa regional representada pela transformação do velho jornal “ValeParaibano” em uma potência, com sede em prédio moderníssimo e sistema de impressão em offset. Da reinauguração do jornal, em 4 de dezembro de 1977, participaram, entre outros, o vice-presidente da República e o governador paulista da época.
E lá estava, em uma equipe composta por bons profissionais vindos de várias regiões do pais –com predominância dos mineiros de Juiz de Fora–, o intrépido Flávio Nery. Desde o início era, como se diz hoje, “marrento”, provocador, polemista, obstinado com suas ideias, mas ao mesmo tempo um furacão que não deixava lauda sobre lauda por onde passava.
Fez história nos primeiros anos de “ValeParaibano”. Costumava convencer o chefe e amigo Antonio Augusto de Oliveira, diretor de redação, a liberar carro, repórter fotográfico e diárias para sair em intermináveis incursões pelo Vale e Litoral Norte. Ficava dias seguidos apurando informações com um “faro” que só os repórteres diferenciados possuem. Quando voltava, trazia a matéria que foi buscar e mais pelo menos cinco ou seis recolhidas em sua passagem.
Rapidamente, o próprio “ValeParaibano”, o maior jornal da região, ficou pequeno para ele. Foi desfilar seu estilo provocador, a volúpia quase inexplicável por mais e mais notícias, por veículos da chamada “grande imprensa”. No “O Estado de S. Paulo”, o “Estadão”, um dos jornais mais respeitados do mundo na época, o caçapavense que se gabava de ter sido “concebido em Santos” ganhou uma vitrine inigualável e conseguiu, em pouco tempo, ser respeitado lado a lado com jornalistas de primeiro nível. Afinal, o resultado do seu trabalho estampado nas páginas do jornal justificava seu prestígio.
A partir do “Estadão”, vieram o “Diário Comércio & Indústria”, conhecido como DCI, a Gazeta Mercantil, e creio que o “Estadão” novamente… tudo a uma velocidade alucinante. Peço desculpas se estiver esquecendo algum outro veículo importante nessa trajetória deste profissional que poucos, só os mais próximos, podiam chamar por “taiada”, como eram (ou ainda são?) conhecidos os caçapavenses.
Flávio brilhou numa época em que o repórter era a figura mais essencial dentro de um jornal, quando o repórter tinha de ir até a notícia –hoje não é raro a notícia vir quase pronta até o jornalista–, uma época em que valia o “olho no olho” com o entrevistado, sem intermediários como assessores de imprensa e outros protetores. Era nesse campo de batalha que o Nery brilhava. Peitava prefeito, ironizava general, conquistava denunciantes, irritava denunciados.
Dois aperitivos do estilo desse amigão:
1 – Estava havendo uma reunião importante no gabinete do prefeito da época, provavelmente em 1978, agora não tenho certeza se era o arenista Ednardo José de Paula Santos ou o seu sucessor, o emedebista Joaquim Bevilacqua. Reunião fechada para a imprensa. O gabinete era o prediozinho acanhado da avenida Dr. João Guilhermino onde hoje funciona a Unidade de Especialidades em Saúde 2. Pois o incansável repórter se esgueirou pelos fundos do prédio, pediu licença para pular um quintal e literalmente escalou as paredes até conseguir ouvir o que se discutia lá dentro.
2 – Campanha do carioca/alagoano Fernando Collor de Mello à presidência em 1989. O candidato desceu no aeroporto de Guaratinguetá e, de lá, embarcou em uma pequena van para chegar ao Santuário Nacional de Aparecida, onde uma multidão o esperava. Muita imprensa em Aparecida. Collor não estava falando nada naquele dia. Visitou Aparecida e retornou de van, pela via Dutra, para embarcar em um helicóptero, novamente em Guaratinguetá. Eu e os demais colegas correspondentes de jornal –José Eustáquio de Freitas, do “O Globo” e Hélcio Costa, da “Folha de S.Paulo”–, fomos de carro acompanhando de longe a pequena comitiva formada por políticos locais, equipe de campanha e os mamutes alagoanos da sua truculenta segurança. E onde estaria o Flávio Nery? Agarrado à escadinha na traseira da van, “viajou” pela Dutra desse jeito. O inesperado: caiu uma pancada de chuva muito forte naquele momento. Resultado: chegando no aeroporto, Collor e seus acompanhantes olham para trás e veem, ainda agarrado à escadinha, um repórter encharcado e tremendo de frio que ainda teve forças para pedir uma entrevista. Não foi atendido, mas recebeu um certo reconhecimento do candidato por sua coragem.
Histórias como estas, envolvendo o Flávio, eu poderia contar dezenas. Foram muitas viagens a trabalho com esse excepcional amigo e colega. Sul de Minas, Vale Histórico –que chamávamos de Fundo do Vale–, Litoral Norte. O cara me fazia ter vontade de trabalhar, era um obcecado pela profissão.
E tem mais: terminadas as aventuras no melhor estilo Indiana Jones, o Flávio voltava para o seu porto seguro, junto da inseparável Célia, uma mulher franzina e doce por quem ele nutria muito amor, respeito e até um certo temor (como todos os maridos… rs). Voltava também para a companhia dos filhos e filhas, aos quais se dedicou com carinho e energia.
Estou terminando este texto às 8h50 desta quarta-feira, dia 19 de abril de 2023. Logo mais, às 11h, o corpo do meu amigo estará baixando à sepultura no Cemitério Parque das Flores, no Jardim Morumbi. Mas tenho certeza de que o seu espírito estará livre, leve e solto em algum lugar escolhido por Deus. E suas histórias, suas lendas, seus exemplos estarão viajando entre os que o conheceram e “polinizando” futuros jornalistas –pelo menos enquanto a Inteligência Artificial não resolver escrever por nós.
Vida longa ao Flávio Nery. Obrigado, amigo.
> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 46 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 22 anos.
> Este texto foi atualizado às 17h04 do dia 21/4/23 após revisão ortográfica e de estilo.