Foto / Rio da Paz/Fotos Públicas

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

Sabe aqueles textos que você não gostaria de escrever? Aquelas verdades que dói ter de dizê-las? Pois é. Esta pandemia faz até isto com a gente. Ter que falar coisas duras em um momento que deveria ser apenas de solidariedade e de mobilização para todos, juntos, sairmos desta crise que parece não ter fim.

Primeira verdade. Por que o Brasil chegou a este ponto, com mais de 4 mil mortos em um só dia por covid-19 e suas complicações? Sejamos honestos. Chegamos porque a maioria não levou a sério a pandemia. A começar pelos governantes maiores do país. Quando o momento deveria ser de mobilização total contra o vírus, como fizeram inúmeros países que hoje navegam acima da pandemia, nós preferimos politizar a questão.

Quando, ainda com a economia e as pessoas com uma certa “gordura” para queimar, o que fizemos? Empurramos as decisões, duras, mas necessárias, com a barriga. Como se aquilo tudo fosse problema de chinês, americano, italiano. E a maioria da população apoiou essa decisão.

Não é preciso ser especialista –basta ouvi-los, lê-los–, para entender que, naquele início, um lockdown sério, rigoroso, disciplinado, fiscalizado, imposto pelos governos, teria nos levado para um outro lugar, muito distante deste em que estamos hoje.

Se fossem duas, três, quatro semanas com o país parado, todos em suas casas e apenas profissionais da saúde e da segurança funcionando como um grande exército trabalhando por todos nós, teríamos, muito provavelmente, salvado muitas dessas mais de 330 mil vidas que se foram. E salvado muitas dessas empresas que estão fechando suas portas.

Mas em vez de “cortar na carne”, como brasileiros que somos, preferimos “tomar um chazinho”. E o que acontece com esse nosso comportamento? A dose “pra leão” que poderia ter dizimado –ou mesmo domesticado– o inimigo lá atrás, talvez ainda no primeiro semestre do ano passado, não foi aplicada. E esse inimigo cresceu, se armou, criou musculatura e está vencendo todas as batalhas. Espera-se que não ganhe a guerra.

O mesmo acontece com a área social, com a necessária solidariedade que se espera em situações como esta. É claro que os governos sabem calcular o impacto das crises nos chamados vulneráveis. Famílias que já sobreviviam quase por milagre antes da pandemia, obviamente ficariam à mingua, à beira do aniquilamento pela fome. A elas, um grande contingente das classes baixa e média baixa passou a somar-se em volumes a cada dia maiores.

Em um primeiro momento, lá em 2020, surgiram algumas campanhas, tímidas, de arrecadação de alimentos, doação de cestas básicas, enfim, ajuda solidária. Da mesma forma, criou-se um auxílio emergencial. Mas, como quase sempre acontece neste país, faltou planejamento e gestão para fazer da solidariedade uma bem-sucedida operação de acolhimento daqueles que estão ficando pelo caminho ao longo da crise.

Seria tão difícil, em “tempos de paz”, os governos terem a área social sob controle? É preciso conhecer e apoiar seriamente as entidades da sociedade civil que se dispõem a atuar na distribuição de alimentos e outros itens de primeira necessidade. E estas, precisam ser eficientes. Seria tão difícil os órgãos públicos conhecerem de perto, com nome e sobrenome, as famílias que necessitam de auxílio? Seria tão difícil a gente poder indicar, com certeza e objetividade, os locais que os pedintes dos semáforos, das portas de supermercados, devem procurar para receber ajuda?

A verdade é que, infelizmente, nas horas em que mais precisamos de seriedade, união, organização e agilidade, nós entramos em choque com as nossas mazelas seculares, com as nossas piores tradições.

Tudo isto me faz lembrar o triste passado escravagista do país. Pressionado pelo Império Britânico a rever a sua política abertamente favorável ao tráfico de escravos –que não fazia isto por apoio à causa abolicionista, mas por razões econômicas, é preciso reconhecer–, o governo brasileiro preferia o caminho da tergiversação. Enquanto dizia “sim, senhor” aos ingleses, aos quais devia fábulas em empréstimos e aos quais estava amarrado por tratados mal negociados, o império brasileiro fechava os olhos para o tráfico.

“Embora o negócio fosse ilegal, a polícia não tomava nenhuma providência e os traficantes atuavam até mesmo nos principais portos do país. (…) Os nomes dos principais negociantes de escravos da cidade do Rio de Janeiro poderiam ser facilmente reunidos, juntamente com seus endereços e nomes dos navios.” (Viagem pela História do Brasil, de Jorge Caldeira.)

Ou seja, o governo brasileiro fingia para os ingleses que estava agindo, mas na prática deixava o tráfico de escravos atuar livremente. Por isso, as medidas que o Brasil prometia adotar para conter a indústria da escravidão ficaram conhecidas como “para inglês ver”.

É exatamente o mesmo que estamos fazendo no Brasil em relação à pandemia. O mundo civilizado nos pressiona, indica os caminhos, até promete ajuda, mas nós fazemos de conta que estamos executando tudo o que é necessário para livrar-nos da fome, do caos econômico e das centenas de milhares de mortes que poderiam ser evitadas.

A pergunta é: até quando?

Em tempo: note que, propositalmente, eu abarrotei este texto do pronome pessoal da primeira pessoa do plural, nós. Este não é o momento de nós contra eles, eles contra nós. É o momento de pensarmos como sociedade brasileira. Antes que mais e mais criaturas que representam a “nós”, os brasileiros, tenham suas vidas abreviadas porque estamos preferindo agir “para inglês ver”.

 

> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.