Arraigada na tradição e na religiosidade, a quase totalidade da população de Cruz das Almas é temente a Deus e atenta aos preceitos da Cúria Romana. Pequena parcela desvirtua. Segue seita qualquer ou é ateu ou à toa, como o professor Felizardo, ateu confesso; e o João Rosado, bêbado inveterado alheio à religião.
Por isso, padre Laurindo não teve dificuldade em prostrar a cidade ante o jugo do notório cruzalmense em sua luta pela vida num leito de hospital.
O ardil do vigário pesou para comover a comunidade e contribuiu para o grande aumento de deprecações e rogos à santinha. Mas é preciso reconhecer: a boa pracisse do cowboy ajudou a pender o prato da balança!
Tobias Maria da Conceição é nascido e criado na cidade, numa casa na Praça de Baixo, em terreno salpicado de árvores frutíferas e banhado, nos fundos, por borbotões de águas limpas do ali apressado córrego Cambuquira.
A construção antiga tem um minúsculo alpendre. Uma veneziana de duas folhas pintada na cor verde sobressai da parede da frente, de pedra argamassada, separada do passeio por um bem-cuidado roseiral e uma cerca baixa de ripas brancas em formato de lança.
Ali o menino Tobias se desfez das sardas, e, não demorou muito, estava na labuta, ajudando o pai a livrar das daninhas o conilon que subia e descia morro, a carecer só de algum cuidado e boa chuva para florescer e despejar com fartura os frutos na derriça. Era do que vivia a família.
De estudar nunca gostou. Concluiu na marra o primário e, a contragosto, o ginásio, onde nunca se deu bem com as matérias, exceto matemática. De raciocínio rápido, tinha facilidade com os números, que mais tarde foram de grande valia no negócio que o enricou, de compra, venda e, depois, criação e engorda de gado.
Com dezesseis anos, a gosto da mãe entrou para o seminário, que frequentou dois anos. Até o dia em que, de férias na casa dos pais, se engraçou com um rabo de saia para quem já se insinuava no curso ginasial. Nunca mais quis saber da carreira religiosa, para decepção da mãe, que ansiava ver o filho padre.
Quando moleque era dado à vida na roça, onde fazia tarefas como tratar das galinhas, recolher gravetos para acender o fogão e revolver os grãos de café esparramados no terreiro para secagem. Tinha devoção pelo pai, que admirava e respeitava, mas que não poupou de aborrecimentos com um histórico de traquinagens e peraltices.
Como no dia em que, na tentativa de afugentar um carcará que espreitava uma galinha com pintinhos, quebrou com uma pedra o vitrô da casa ao lado. Delatado pelo irmão mais novo, ficou vários dias sem brincar com o pião de azinheira e as bolinhas de gude. O pai pagou o prejuízo do vizinho.
Já mais velho colocou fogo no paletó do defunto tio-avô. Depois das exéquias e já perto do enterro, alguém da família achou por bem trocar o paletó do morto, que tinha uma mancha do lado esquerdo, na altura do bolso do relógio. E não seria adequado o falecido se apresentar na morada eterna carregando uma nódoa.
Caixão na sala sobre o assento de duas cadeiras, deram uma das velas acesas para o menino Tobias segurar. Não foi fácil trocar a indumentária! Em dado momento, quando se ultimavam os detalhes para devolver a boa aparência ao finado, o esquife foi ao chão. Com o susto, o moleque fez voar a vela, que caiu sobre o caixão ateando fogo no paletó novo do morto. Ele jura que foi involuntário, mas ninguém acredita.
A não ser pela presença num bom e barulhento jogo de truco, Tobias não tem vício. É religioso de frequentar a missa aos domingos e comungar; e participa ativamente da vida da igreja, cujas obras de caridade ajuda com despojamento. Mantém boas relações com diferentes segmentos da cidade e gosta de ajudar os mais humildes sem que a mão esquerda saiba o que faz a direita.
Construiu na pecuária de corte uma pequena fortuna. Começou a ganhar a vida com um modesto açougue abastecido com carne de boi abatido no pé da goiabeira. Depois, deu de comprar e vender gado com grande sucesso, até comprar a fazenda Grotão dos Pássaros, para criação de animais de corte em piquetes com água em abundância e boas forrageiras.
Gaba-se de negócios como a compra de uma vacada magra, doente e bernenta, pela qual pagou uma pechincha. Quase trezentos animais, que curou, tratou e engordou para vender, seis meses depois, com um lucro formidável.
Sempre que indagado se tem inimigos, exibe quatro dedos, e vai logo dizendo que não são inimigos, mas adversários que fez na política quando o irmão Teodorinho –atualmente deputado– se elegeu prefeito de Cruz das Almas. Daí sua aversão por esta seara. E também porque, reconhece, não é do ramo.
[Continua…]
> Carlos José Bueno é jornalista profissional (MTb 12.537). Aposentado e no ócio, brinca. Com os netos e as palavras.