O brasileiro padrão é um cara meio fora do contexto da Humanidade. Sabe aquele tipo que acha que está fora do processo histórico? Acha que as coisas nunca vão acontecer com ele, que ele nunca será localizado, enfim, que ele é mais ele?
Eu também, como bom brasileiro, sempre achei que estivesse à margem de todo e qualquer reflexo do que acontece nas relações de poder. Essas relações são as que envolvem a política, a diplomacia, a economia e outros tantos temas que têm a ver com a disputa político-ideológica que é travada dentro e fora do Brasil.
A minha convicção de ser um cidadão insignificante para os interesses das grandes corporações ligadas ao poder ficou abalada após uma situação que eu vou contar agora, pela primeira vez, se você quiser seguir até o final este textinho.
A história ocorreu entre os anos 1995 e 2000, portanto entre 20 e 30 anos atrás. Eu morava na região sul, onde fiquei entre 1983 e 2000, em três endereços diferentes, mas todos apaixonantes, pelo local e pela vizinhança.
Próximo de uma dessas moradias, na avenida Cidade Jardim, mais ou menos em frente onde está hoje a padaria Charmosa, havia um bar conhecido por Bar do Nenê. O dono era um funcionário do Inpe, gaúcho, falador, simpático, que conseguiu reunir uma clientela fiel para os seus assados que tinham como acompanhamento enormes saladas de agrião.
O lugar era frequentado pelos amigos do Nenê (o nome de batismo não nos interessa aqui), por gente do bairro, gente do Inpe, políticos e, não me pergunte por que, por gente da Imprensa. Para mim, como jornalista, era um lugar acolhedor, além de ser próximo de casa.
Vou direto ao assunto. Em uma bela noite, cheguei no bar e pedi uma cerveja. Estava sozinho na mesa, os amigos de quase sempre não haviam chegado ainda, mas haveriam de chegar. Mas ali, sozinho, como amigo da casa, me sentia muito confortável, como sempre.
Até que percebo um cidadão, na faixa de uns 35 anos (estou relatando isto pelo menos 20 anos depois do ocorrido, nada é muito exato), em uma mesa distante cerca de uns quatro metros da minha. Resmungava, praguejava e lamentava-se com ele mesmo. Mas, estranhamente, olhava para mim quase o tempo todo.
Como o lugar era tido como seguro e bem frequentado, chegou um momento em que não resisti mais à curiosidade e, corajosamente (rs…), fui até ele e disse mais ou menos o seguinte:
— Tudo bem? Acho que você me conhece, mas eu não te conheço…
E ele respondeu prontamente, mais ou menos assim:
— É, senhor Wagner, eu sei tudo sobre o senhor. Desde que o senhor morava em [tal lugar], quando o senhor era casado com [tal esposa], o senhor trabalhava no [empresa], frequentava [bares e restaurantes]. Mas hoje o senhor está aí e eu estou aqui, vendendo coleções de livros de porta em porta pra sobreviver.
A descrição do moço me provocou um arrepio na espinha. Nem uma mulher ciumenta –que nunca foi o caso da minha maravilhosa e segura esposa– poderia ser tão eficaz. A minha vida estava ali, na memória daquele cara que eu nunca vi na vida e fazia questão de me tratar por senhor.
Convidei o moço para a minha mesa, pedi cervejas e uma generosa porção de carne, no estilo gaúcho, com a famosa salada do lugar. Ele aceitou, meio desconfiado, mas logo ficou à vontade, embora continuasse revoltado.
Perguntei a ele como sabia tanto da minha vida. E ele foi direto. Disse que trabalhava para o SNI –sigla que identificava o Serviço Nacional de Informações, que espionava tudo no Brasil para abastecer os governos militares da época. Relatou rapidamente os locais onde eu morei, com quem me relacionava, bares e restaurantes que frequentava e outras coisas mais.
Aquele relato me deixou assustado. Por que eu? Um cara tão desimportante. Mas ele concluiu dizendo que a equipe que ele integrava era responsável por acompanhar a rotina de políticos, empresários, sindicalistas, jornalistas…
Ah, tá. O bocó aqui entrou nessa por ser um jornalista. Na mesma hora, pensei: “Meu Deus, se esse pessoal se preocupou com um repórter tão inexpressivo como eu, imagine o que eles faziam com quem realmente tinha importância na vida política do país naquela época?”
Na conversa com esse “amigo de bar”, confirmei o que todos os colegas jornalistas conhecidos como “correspondentes” desconfiavam na época. [Correspondente era o jornalista contratado pelos maiores jornais do país para enviar reportagens sobre os assuntos da cidade e da região que poderiam interessar aos leitores de todo o país.]
No período do regime militar, fui correspondente dos jornais O Estado de S. Paulo, o famoso Estadão, e da Folha de S. Paulo. Anos depois, em 1989, também fui correspondente do Diário Popular, para o qual cobri toda a campanha eleitoral para presidente da República na primeira eleição direta após o regime militar.
Voltando ao meu convidado. Ele me relatou, entre goles de cerveja e nacos de churrasco, que todos os passos dos “investigados” locais eram seguidos pelo SNI. E acrescentou revelando o que todos nós, correspondentes, já temíamos: os telefones da sala de imprensa que usávamos na Câmara Municipal estavam devidamente grampeados. É claro que sem o conhecimento da direção da Câmara.
Aquela noite na Cidade Jardim, região sul, me revelou muita coisa. Descobri que ninguém está livre de participar –ou de ser envolvido– de situações que parece só existirem nos filmes de mistério e espionagem.
Naquela noite, conheci ao vivo e em cores o famoso araponga*, uma figura mística que alguns achavam que não existia e outros sabiam que era verdadeira. Araponga foi o nome dado aos contratados pelos governos militares para investigar, se imiscuir, xeretar, fuçar a vida dos outros e, por fim, informar tudo à agência central do SNI para intrigar os cidadãos contra o governo autoritário da época.
Paguei a conta do cidadão deixado na “areia” depois que o regime militar deu com os burros n’água e que conhecia a minha vida quase tão bem quanto eu. E fomos cada um para sua casa viver as nossas vidas. Eu, como um simples jornalista que nunca seria perigoso para o Estado, e ele como alguém que acreditou que, por meio da “xeretice”, poderia proteger o Brasil de supostos inimigos.
Conclusão: a democracia é a união de todos que desejam o melhor para o seu país e os seus concidadãos; e o autoritarismo é a divisão forçada entre irmãos que, 20 ou 30 anos depois, podem dividir uma mesa de bar e se reconciliar.
*Segundo o dicionário Houaiss, “araponga” deriva do tupi gwïra’ponga (ave sonante), forma atestada desde o século 16 para uma espécie de pássaro (Procnias nudicollis). O sentido de “agente secreto” remonta ao protagonista da novela Araponga, de Dias Gomes, Lauro César Muniz e Ferreira Gullar (Rede Globo, de 15/10/90 a 29/3/91). O protagonista era o detetive atrapalhado Aristênio Catanduva (Tarcísio Meira). A escolha do codinome foi motivada pelo fato de agentes de informação do SNI terem o hábito de adotar codinomes inspirados em animais e insetos.
> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.