Foto / Carlos José Bueno

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

Um telefonema do hospital interrompeu, no início dos Mistérios Gloriosos, o Rosário da Compaixão que a família Conceição habituava rezar na mansão de Pedrinhas aos sábados de manhã. Depois do acidente em Novo Cedro, a prece abarcava pleito especial à Virgem do Bom Remédio pela saúde do patrãozinho, como os empregados chamavam Tobias.

Na linha, o médico chefe da equipe que operou o peão trazia boa notícia. Depois de trinta e três dias, o paciente tinha acordado do coma. Estava atrapalhado e agitado. Só se acalmou com medicação apropriada. Para diagnóstico preciso, seria submetido a uma bateria de exames, para indicar condutas e apontar eventuais sequelas, aflição da família. Mas, naquele momento, acordar era sinal de vida.

A quase viúva atendeu o telefone na sala contígua à capela da casa, local da reza. Emocionada, chorou. Agradeceu ao médico, retocou a maquiagem e foi transmitir a boa-nova aos presentes, que, de tão eufóricos, encerraram o evento às pressas, desprezando a tradicional Salve-Rainha.

Padre Laurindo soube pela mulher que o afortunado tinha voltado do coma falando coisa com coisa. E pensou. O fato de ter dormido trinta e três dias, mesma idade de Jesus quando de sua crucifixão, não era coincidência, mas milagre. A Santa Padroeira tinha ouvido as sobejantes preces do povo de Cruz das Almas.

Depois que abriu os olhos para a vida, o paciente Tobias da Conceição teve recuperação meteórica e surpreendente. Em pouco mais de uma semana deixou os cuidados intensivistas, sendo transferido para um quarto, de onde pôde ver o céu azul e o majestoso Monte Pilão.

Todos os exames indicavam incrível normalidade. Após intensa fisioterapia para se recuperar da bambice nas pernas, o peão estava de alta. Como resultado do traumatismo causado pelo coice do mestiço assassino, só o olho esquerdo anuviado, que o oculista assegurou melhorar com o tempo. Foi embora no banco de trás do seu confortável automóvel, ladeado pela mulher e o padre.

No caminho soube da comoção e do mutirão de preces dos concidadãos. E deu de remoer se sua cura não seria mais uma graça recebida. Sim! mais uma. Uniu os pontos soltos da vida e se lembrou do dia em que a santa o livrou de perecer num lodo catinguento. Jovem, negligentemente saiu só ao encalço de uma rês desgarrada, e caiu no brejo. Chafurdado até o umbigo, e sem forças para sair, implorou ajuda dos céus. Foi achado de manhãzinha.

PUBLICIDADE

Ao sair do hospital optou por ficar na fazenda, onde por bom tempo se absteve dos negócios, ainda sob tutela do capataz. Amuado, refugiou-se numa cabana precária; e no seu íntimo tomou uma decisão que iria mudar o destino de Cruz das Almas. No domingo foi à missa, a primeira depois de sair do hospital. E ouviu padre Laurindo exaltar sua cura e atribuí-la à santinha.

Durante o almoço disse à família que tinha tomado importante decisão, a exigir sacrifício e compreensão de todos. Para fazer o que entabulou, teria que dispor de bens como a mansão de Pedrinhas, o sítio San Valentin, e três ou quatro boiadas. Não detalhou o intento, pois, para isso, carecia que Teodorinho, o irmão deputado, agisse nos bastidores, junto ao governador. Do contrário, nada feito!

Depois de saber da ambição do irmão, Teodorinho foi se ver com o chefe do Executivo estadual. Nem gastou saliva. Político experiente, o governador enxergou no plano valiosa alavanca reeleitoral, e bateu o martelo. Daria à paróquia Nossa Senhora do Bom Remédio permissão de uso do Monte Pilão por 100 anos.

Com isso, o rico fazendeiro pôde levar seu plano adiante, que revelou ao padre: planejava construir no alto do monte uma grande imagem da Virgem do Bom Remédio, como paga pelos milagres. Contente, o sacerdote anuiu. Havia tempo sonhava com isso toda vez que da varanda de sua casa fitava aquelas escarpas. Mas a igreja não dispunha de recursos financeiros para a vultosa obra.

PUBLICIDADE

O opulento paroquiano vendeu metade dos bens. Com o dinheiro, construiu sobre o cume da montanha uma imagem de 25 metros de altura, que à noite resplandecia e enchia Cruz das Almas de emoção e orgulho. Uma emenda parlamentar de Teodorinho garantiu acesso e boa estrutura ao lugar, que virou movimentado centro de peregrinação.

O extraordinário feito da santa teve o condão de devolver Adeodato ao convívio da igreja, aonde o muxiba encontrou na viúva Adelaide a tampa para o seu balaio. Já o professor Felizardo abandonou Karl Marx e converteu-se ao catolicismo; e dona Mariinha tramelou a língua após vantajoso acordo que deu cabo ao processo contra a igreja.

Por sua liderança e tino administrativo à frente da paróquia de Cruz das Almas, padre Laurindo virou bispo da novata diocese de Beiranópolis. Um barril de pólvora ao norte do estado, onde conflitos entre fazendeiros, grileiros e indígenas eram uma rotina de sangue.

Com caraminguás de menos e prestígio de mais, mesmo sem gosto nem jeito para a política, Tobias Maria da Conceição foi convencido pelo irmão a concorrer ao Paço Municipal. Eleito com retumbante votação, fez do Executivo ponte para a Câmara dos Deputados, nadando de braçada na fama da prodigiosa Santa do Pilão.

 

> Carlos José Bueno é jornalista profissional (MTb 12.537). Aposentado e no ócio, brinca. Com os netos e as palavras.