O SuperBairro entrevista o especialista Miguel Carretero, do Inpe, um dos desenvolvedores da urna eletrônica brasileira
WAGNER MATHEUS
Miguel Adrian Carretero, 58 anos, formado em ciência da computação com mestrado em simulação aeroespacial, trabalha há 35 anos no Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Em 1993, ele passou a integrar a reduzida equipe que informatizou o sistema eleitoral brasileiro e, ao mesmo tempo, criou a urna eletrônica utilizada até hoje no país. Veja a íntegra da entrevista realizada em uma manhã de domingo na residência de Miguel, em Caçapava.
Como chegou até o senhor a questão do desenvolvimento de uma urna eletrônica no Brasil?
A urna eletrônica foi um subproduto da própria informatização da Justiça Eleitoral, que se iniciou em 1993. Nós havíamos feito um trabalho antes no Ministério da Saúde e o coordenador de informática do ministério foi para o TSE [Tribunal Superior Eleitoral]. Então, nós iniciamos a informatização, que foi todo o processo de cadastros e serviços. E a urna foi a posteriori. Depois da eleição de 1994 se definiu fazer a urna eleitoral, ou seja, ela é um agregado criado no momento de expansão da própria informatização da Justiça Eleitoral.
Como chegou para vocês o pedido de informatização?
Nos anos 90, no Inpe, nós já trabalhávamos com um conceito de desenvolvimento de redes de computadores, que na época era uma coisa muito nova no Brasil. E como o Inpe é um instituto de pesquisas, nós trabalhávamos com isso. Numa apresentação que fizemos em um seminário, em Brasília, o diretor da informática do Ministério da Saúde nos viu e nos chamou para trabalhar no ministério. E depois veio o trabalho no TSE. Foi a partir de um trabalho interno do Inpe que nós chegamos a isso. E a urna foi uma segunda coisa, um produto da informatização da Justiça Eleitoral.
“A urna foi uma segunda coisa, foi um produto da informatização da Justiça Eleitoral.”
Quem definiu a equipe que foi formada? O que se diz é que ela tinha três integrantes, dois militares e um civil vindo do Inpe.
Na verdade, no começo, fomos Paulo Sérgio Nakaya e eu, que trabalhávamos no projeto de redes dentro do Inpe. Fomos nós que fizemos a apresentação naquele seminário e fomos chamados para criar uma rede de computadores para o Ministério da Saúde. Nós convidamos mais duas pessoas para integrar a equipe, Antonio Esio Marcondes Salgado e Mauro Hashioka. Nós quatro éramos do Inpe quando começou o trabalho no Ministério da Saúde. Mas é aquela história, em Brasília muitas coisas mudam por questão da política. Depois, esse diretor foi para o TSE e nos chamou também para informatizar o TSE. Então, o primeiro passo foi a informatização dos processos da Justiça Eleitoral. Depois, se mostrou a necessidade de fazer a urna, foram criados os projetos temáticos da urna e aí veio um [profissional] do CTA, não me lembro o nome, um da Marinha e um da Aeronáutica. Mas tudo foi feito como uma caixinha, fiz o trabalho de apoio no desenvolvimento, os outros três foram gerentes e eu atuei na área técnica. Foi essa equipe que escreveu o escopo da urna.
Isso foi em que época?
No final de 1994, começo de 1995. Porque já havíamos feito a informatização da eleição de 1994, para presidente da República, e aí fomos convocados para fazer esse tipo de trabalho [desenvolvimento da urna].
Como vocês encontraram a Justiça Eleitoral em termos de organização, facilidades?
Era totalmente deficiente de processos automatizados, possuía muitos modos de operacionalização manual. Porque a Justiça Eleitoral, em sua estrutura, tem os TREs [Tribunais Regionais Eleitorais], que têm alguma independência em seus processos e são vinculados administrativamente ao TSE. Então foi um pouco difícil fazer a integração da informatização. Como o TSE teve recursos financeiros, os TREs aceitaram, vamos dizer, um pouco da ingerência do TSE nos tribunais regionais. Mas eles ainda eram muito defasados no aspecto tecnológico.
Isso prejudicava, de alguma maneira, todo o processo envolvendo desde os eleitores até a eleição?
Havia atrasos, dificuldades, porque tudo ainda era baseado em papel, em processos manuais, e isso dificultava. Por exemplo, se você não votasse, tinha uma dificuldade enorme, demorava meses para pegar um certificado de que você votou ou que pagou a multa. Havia um atraso muito grande na Justiça Eleitoral.
Então a primeira etapa foi a informatização… o que vocês conseguiram fazer nesse período?
Distribuição e integração dos cadastros eleitorais, computadores para os tribunais regionais, para as zonas eleitorais… isso agilizou muito o processo. Na segunda fase nós fizemos todo o trabalho da eleição de 94, quando já fizemos a contabilidade integrada dos votos, automática. O processo foi por contagem manual, mas a totalização já foi informatizada. O voto ainda em papel, mas as centrais já tinham computadores onde já se ia digitando os mapas e, a partir daí, fazendo a contabilidade e dando os resultados.
“Demos os resultados [em 1994] em menos de duas semanas. Antes, demorava meses.”
E qual foi a diferença em relação à eleição anterior para presidente da República, em 1989, sem todos esses recursos?
Nós demos os resultados em menos de duas semanas. Antes, demorava meses para você ter uma totalização global. Eu trabalho na Justiça Eleitoral desde os anos 80, já havia passado por todos os processos. Sabia o que era fazer uma apuração de mesa…
Como é que se chegou à ideia de que o passo seguinte seria uma urna eletrônica?
No final dos anos 80 e início dos 90, já havia países no mundo que tinham voto eletrônico.
Mas o que sempre se diz é que o Brasil é o único que faz isso…
Deixa eu explicar. O processo eleitoral brasileiro é diferente do de outros países. Então se pensou, nós precisamos diminuir esse tempo. Não sei se alguém sabe, mas em 1994 a eleição do Rio de Janeiro foi anulada por tentativa de fraude, trabalhei naquela eleição na parte de segurança. Foi uma tentativa dentro do processo de totalização, não na urna eletrônica. Havia duas caixas de papel sulfite de um computador, onde alguém passou a noite inteira tentando quebrar a segurança do computador de totalização, sem ter sucesso. Isso foi no Rio de Janeiro. Foi feito um relatório informando as tentativas de fraude, que ficaram oficializadas.
E esses votos foram anulados?
Lembra que em 1994 houve uma nova eleição na cidade do Rio de Janeiro? Quase ninguém se lembra disso, mas houve. Trabalhei com policiais armados, dormi no hotel com esses policiais de fuzil. Íamos tomar café, ninguém mais entrava no restaurante. Então a gente percebeu a necessidade de tornar a coisa mais rápida. E como tornar a coisa mais rápida? Pelo voto, que era complicado, porque você tinha que pegar o voto em papel, depois contar, depois contabilizar. Então nós vimos que já existiam coisas parecidas em alguns lugares do mundo e trouxemos isso para a nossa realidade. Foi quando ocorreu a ideia de uma urna eletrônica.
Vocês partiram de alguma experiência anterior, de algum outro país?
Não. Foi estudado, escrito e feito um edital de especificação, que depois foi lançado no mercado. Foi um pouco diferente do processo normal, em que o comprador lança a licitação e diz “eu quero tal produto”. Como não tínhamos o produto, foi feita uma especificação básica das necessidades e o edital foi lançado para várias empresas da área de informática pedindo que trouxessem uma proposta de como fazer a urna. Nós avaliamos o que cada empresa trouxe, escolhemos uma proposta e certificamos como o nosso escopo. Depois, lançamos isso como edital, porque aí é um processo licitatório, conforme os órgãos do Estado precisam como meio jurídico de compra. E aí nós escolhemos esse tipo de urna que temos até hoje. Claro, com algumas melhorias, mas a ideia original é a mesma.
Demorou quanto tempo entre o edital e a apresentação?
Foi de dois a três meses para a chamada pública, depois um estudo de mais ou menos um mês até a definição do escopo e, em seguida, foi feito o edital e uma empresa ganhou.
Qual foi a empresa?
Eu não me lembro, porque essa empresa já mudou de nome, faz mais de vinte anos…
Várias empresas participaram?
Sim, várias empresas, não foi uma escolhida como se tem dito por aí… Primeiro foi feita a chamada para nos passarem os projetos. Elas tinham que fazer o que a gente chama de mockup [modelo físico da urna].
Partiram do zero…
Sim, partimos do zero. Nós tínhamos o conceito, o que deveria ser feito e o que tinha que acontecer. Aí as empresas vieram com os seus mockups e a gente analisou até chegar a um que atendesse fisicamente às nossas necessidades. A partir daí, colocamos outros requisitos e “jogamos” no mercado. Então foi feita uma licitação com todas as empresas que quisessem participar, umas seis empresas participaram.
E a que ganhou, o senhor não se lembra do nome?
Acho que, na época, foi a Unisys, que era a antiga Burroughs, já mudou…
Era uma empresa nacional?
Era obrigada a ser nacional porque havia a lei da informática, mas com capital estrangeiro.
“Na verdade, a urna é uma grande calculadora, […] um computador simples, mas complexo em sua segurança.”
E de início já se chegou a um resultado importante no funcionamento da urna?
Sim. Na verdade, a urna é uma grande calculadora. Ela não é um equipamento complexo. Ela é uma calculadora, você coloca o número, ela conta e soma, conta e soma… só. O que nós precisávamos era garantir segurança, que fosse constante, que a quantidade de falhas fosse pequena, isso era o que nós mais precisávamos, porque na verdade é um computador simples, mas complexo em sua segurança.
O que existia na época, comparativamente, em termos de tecnologia da informação? Que tipo de máquina fazia mais ou menos o que se passou a fazer com a urna eletrônica?
Era como uma grande calculadora, nós a sofisticamos com vários acessórios, como colocar o software, segurança, proteção…
Quando ela ficou totalmente aprovada?
Em 1995 mesmo nós já tínhamos aprovado a urna e a empresa vencedora. Aí seguiu o estudo para vermos em quais cidades iríamos colocar. Procuramos, para a eleição de 1996, as capitais de estados para a estreia da urna eletrônica. Fizemos testes em pequenas cidades, mas não era uma eleição, era validação, testamos qual era a funcionalidade, se era fácil ou difícil. E corrigimos alguma coisa. Por exemplo, esse teclado atual, era um teclado do tipo “chapado”. Mudamos o teclado, o visual, esse “bip” que soa no final, foi testada uma sirene, um monte de coisas. Na verdade, chegando no final de 1995, já tínhamos o produto pronto, a caixa, os conceitos de sistema, o software já estava desenvolvido, enfim, já era o protótipo final.
Qual foi o critério para a escolha das cidades que receberiam urnas eletrônicas já em 1996?
O TSE definiu as capitais e algumas cidades com maior número de eleitores. Não daria para fazer no Brasil inteiro porque, primeiro, a produção não daria capacidade na época, e seria muito complicado e complexo gerenciar uma coisa que ainda estava meio embrionária.
Então já foi um teste de campo em uma eleição para valer…
Sim. Além da urna eleitoral existe todo um background que as pessoas não sabem, que precisava ter nas seções, que era implantar o computador que iria ler, que iria mandar, que iria totalizar, porque as totalizações são feitas nos tribunais regionais. E havia uma situação interessante, em 1996 a eleição era municipal, não precisava totalizar no âmbito federal, senão a gente teria muito mais complicação. Se fosse federal, alguns estados iriam enviar com voto manual e uma mistura do processo manual com o informatizado iria ser bem confusa. Mas como foi eleição municipal, quem estava fazendo no processo manual fechava no manual e depois enviava para o TRE. O duro seria em uma eleição nacional, em que teria que se separar o prefeito, o senador, o governador… seria muito mais complexo.
Qual foi a avaliação de vocês depois daquela eleição de 1996?
Foi ótima. Tivemos problemas sim, mas nada que inviabilizasse. Ou seja, a urna era viável. Mas daí em diante passamos a enfrentar outros problemas. Lugares onde não havia energia elétrica e a bateria tinha que aguentar mais, por exemplo, no meio do Amazonas, no Amapá… começamos a ter que avaliar como fazer com que chegasse, junto com a urna, toda a logística necessária nesses locais. Problemas como colocar urnas em municípios que não tinham nem gerador de energia. Como fazer? Teria que levar até lá e a bateria durar o tempo necessário para que pudesse ser usada na votação e retornar. Mas eram problemas que não inviabilizavam, bastava resolver.
E como foi na eleição seguinte, em 1998?
Já aumentou mais, mas a utilização geral no Brasil foi em 2000. O desafio era também a questão da demanda. Eram centenas de milhares de urnas, era preciso deixar urnas de reserva, então a quantidade era muito grande. Até o ano passado ainda usávamos algumas urnas de 1996, parece que agora [em 2022] já não teremos mais. Isso comprova que a urna é um equipamento de longa duração. O problema de uma urna de 1996 é que, se der algum problema, não há mais peças de reposição, então elas vão sendo trocadas. A cada eleição vai havendo uma substituição gradativa por urnas mais novas.
E a equipe? Ao longo desse tempo ela foi sendo ampliada ou se manteve a equipe original?
A cabeça foram quase as mesmas pessoas. É que o tribunal [TSE] tinha uma equipe de TI [Tecnologia da Informação] própria, com vários programadores, analistas. E os TREs também já tinham suas equipes. Na verdade, a gente não tinha muito mais o que fazer porque o nosso trabalho era o projeto, não a operacionalização dos processos da Justiça Eleitoral. Em 2004 a nossa parte já estava entregue e eles estavam tomando conta. Algumas zonas eleitorais também passaram a ter suas equipes de TI. O nosso papel foi informatizar, tendo a urna eletrônica como um produto da informatização, e a entregamos para o “cliente”.
Então o que se percebe é que o processo todo não está nas mãos de uma só equipe…
São todos coparticipantes. Claro que o TSE é o responsável pela parte executiva do processo, mas a operacionalização está dividida entre os vários componentes da Justiça Eleitoral.
“Não existe caixa preta. Está tudo aberto.”
Ou seja, não existe caixa preta…
Não existe caixa preta. Está tudo aberto. Eles próprios giram… a verdade é que nós pegamos uma Justiça Eleitoral com várias deficiências tecnológicas e a deixamos da forma como é hoje. Hoje, a pessoa chega em um cartório eleitoral e recebe tudo com rapidez. A evolução tem sido constante, mas até um certo ponto, porque já se chegou praticamente no limite.
O senhor acha que há alguma coisa que ainda se possa fazer para melhorar a urna?
Tem. Mas a um custo muito elevado. Por exemplo, o que chamamos de satélite da urna, que é um terminal onde o mesário da seção eleitoral digita para abrir a urna e o eleitor poder votar. Ao lado do satélite existe um “chanfro”, porque lá em 1994 já se pensava no uso de um smarth card. O eleitor teria o smarth card e passaria no satélite como faz no seu banco. Ele próprio passaria o cartão e ali ficaria registrado que ele votou, não precisaria nem do comprovante em papel.
Isso seria uma oportunidade de melhoria…
Sim, mas é caro. Envolveria todo um recadastramento, além de um cartão para cada eleitor. Sofistica, facilita, mas não altera muito o processo. Com o cartão o eleitor não precisaria votar necessariamente na sua seção, mas em qualquer seção da cidade. Igual a ir a um caixa eletrônico.
“Você vê a OEA ou algum outro órgão internacional reclamar de eleição no Brasil?”
Mudando um pouco de assunto, a partir da aprovação da urna eleitoral brasileira, lá no final dos anos 90, como foi a repercussão internacional na época?
Não houve muita repercussão porque era uma coisa muito nacional. Claro que todo mundo achou interessante porque o nosso processo se tornou muito mais democrático. Claro que a urna é respeitada, tanto que a OEA [Organização dos Estados Americanos] foi a primeira que aprovou. Você vê a OEA ou algum outro órgão internacional reclamar de eleição no Brasil?
Falando nisso, desse período em diante se registrou algum protesto por causa de resultado de eleição com o uso da urna eletrônica?
Nada. Em termos de democracia, é o melhor processo que o Brasil já teve.
“Em São José mesmo, na última eleição com cédula de papel teve gente que começou a querer fraudar. […] Deu rolo…”
Houve alguns casos isolados?
Não, nada. Porque antes era papel. Em São José mesmo, na última eleição com cédula de papel teve gente que começou a querer fraudar colocando bico de caneta azul embaixo da unha na contagem dos votos. Porque quando era feita a apuração na mesa, as canetas só podiam ser de tinta preta ou vermelha, porque o voto válido era com tinta azul. Então, na hora de contar, algumas pessoas riscavam um xis em azul com a ponta da caneta embaixo da unha e marcavam nos votos em branco para quem desejavam. Ou se quisessem anular votos também anulavam. Isso aconteceu em São José em 1992, deu rolo…
Houve punições? A fraude chegou a comprometer o resultado?
Aí não se podia mais recontar os votos. Mas quem trabalha em uma eleição para a Justiça Eleitoral é considerado um funcionário público, está sujeito a sanções administrativas, pode ser preso ali. Houve gente presa naquela eleição.
Mas foi possível quantificar a fraude, quantos votos fraudados?
Não deu. Mas se descobriu.
“Eu poderia te dar uma entrevista só falando de todas as fraudes que poderiam ser feitas [antes da urna].”
Isso deve ter acontecido no Brasil inteiro…
Aconteceu de monte. Eu poderia te dar uma entrevista só falando de todas as fraudes que poderiam ser feitas. As eleições em papel eram manipuladíssimas.
Ou seja, se formos comparar voto em papel com urna eletrônica, estamos falando…
Do inferno e do céu.
Então por que o senhor acredita que a urna eletrônica não é largamente utilizada no mundo inteiro?
Vamos entrar em uma conversa um pouco diferente. Para se ter uma eleição é preciso haver as leis e a Constituição. O processo eleitoral é um processo diferenciado. Nos Estados Unidos, por exemplo, na época da eleição eles criam os comitês partidários. E quem financia isso são os partidos. Porque lá o voto não é obrigatório, eu vou se eu quiser. Então em um determinado condado [equivalente à seção eleitoral no Brasil], que não tem dinheiro, se o condado tem, por exemplo, mil pessoas eles podem definir que a eleição ali vai ser feita tal dia, tal hora, em um mesmo local. Os que aprovam os democratas ficam de um lado, os republicanos de outro e alguém sai contando as pessoas, chega ao total e envia o resultado para o comitê eleitoral.
“Nos Estados Unidos tem informatização boa, melhor que a nossa. […] Mas lá, cada estado adota o que quiser.”
Então cada país tem o seu processo.
Cada um tem o seu processo. Nos Estados Unidos tem informatização boa, melhor que a nossa. Eles têm urna eletrônica, muito mais sofisticada e melhor que a nossa. Mas lá, cada estado adota o que quiser. Aqui o processo é com a Justiça Eleitoral, lá é diferente.
Quer dizer, não é uma tecnologia só brasileira…
Não. A Alemanha tem isso, a França tem isso, cada um com a sua tecnologia, conforme as leis eleitorais de cada um. O que a urna eletrônica trouxe de bom é que nós aceleramos o processo, ficou fácil de contar, facilitou. Por quê? Porque o nosso conjunto legislativo nos facilita partir desse processo de fazer a urna. Se eu gasto milhões no voto eletrônico no Brasil, é economia, porque vão ter que votar pelo menos 150 milhões de pessoas. Então vale a pena o custo de um real ou dois por eleitor para pagar isso. Agora, em um país onde o voto não é obrigatório, que não se sabe quantos vão comparecer, aí é preciso pensar em quanto se vai gastar.
O senhor se lembra de alguns países que estejam usando a urna eletrônica brasileira?
A brasileira não, porque a urna eletrônica brasileira é muito associada ao nosso contexto, à nossa realidade. Você vai na Alemanha, a urna do tipo da brasileira já existiu lá, que é a Direct Recording Electronic voting machine, chamada de primeira geração. Mas adaptada ao contexto deles. O problema é que as pessoas pensam que todo mundo tem o mesmo processo eleitoral. Mas você não consegue colocar o mesmo sapato no pé de homem e no pé de mulher. Até tentaram colocar aqui na América do Sul, mas não deu muito certo porque as características são muito fechadas ao Brasil. Agora, a urna é o equipamento, mas votação eletrônica é diferente em cada lugar. Você pode ter uma urna, pode ter outro equipamento, ter algum método que pode automatizar. O nosso método é a urna. Agora, você vai na Alemanha, sabe como é o voto? Também é uma urna eletrônica, só que você pega um papel, escreve o voto, escaneia o papel, registra o voto e pega seu papel escaneado junto com o recibo e leva para casa, chamada de terceira geração. Você pode fazer isso no Brasil? Não…
“Mas a gente não deixa de ter impressão do voto, porque você tem que tirar a zerésima […] e o mapa de votação.”
E a questão do voto impresso e auditável, que se discute muito hoje no Brasil, como senhor entende essa reivindicação?
Alguém se lembra que em 1996 o voto foi impresso? Até então, era impresso. O que acontecia? Primeiro, o voto impresso não garante nada porque é um papel impresso, só gera problema, porque a impressora é um mecanismo mecânico que quebra, falha, solta tinta. Se você perceber, a urna tem um espaço para acoplar a impressora. Mas nós pensamos, por que eu vou imprimir se eu estou com o voto lá na urna? A impressão do voto é um problema técnico. Mas a gente não deixa de ter impressão do voto, porque você tem que tirar a zerésima [boletim impresso na inicialização de cada urna] no início e quando a eleição termina você tem que imprimir o mapa da votação, então tem impressora. Só que ela é usada duas vezes. Se der algum problema nesse meio do caminho você consegue resolver. Agora, se você está na metade da eleição, às duas horas da tarde, trava a impressora, como você vai trazer outra?
Isso atende às expectativas?
O problema é a diferença entre o voto impresso e o voto impresso solicitado hoje. Auditável? Todo o processo que a gente colocou, desde o primeiro momento, tudo é validado. A gente vem de uma instituição que prima por transparência. Os partidos políticos podem ver o código-fonte, recebem o código-fonte. Fonte é o programa, que passa por um processo que nós chamamos de compilação e gera um código executável. Só que esse código executável não é puro, como você tem hoje no seu computador. Todos os partidos mandam um código, que gera uma chave, que criptografa esse código. E ele tem o que nós chamamos de check-sum, que é um CRC [Cyclic Redundancy Check]. Se você selecionar qualquer urna do Brasil vai verificar que o check-sum do código é o mesmo. Primeiro que já não roda se o check-sum não for igual, porque o nosso sistema bloqueia. Se alguém tentar mexer, vai bloquear.
Então a auditagem já começa por aí…
Começa por aí, já pelos partidos. E aí, na sequência, são selecionadas urnas por amostragem. Retiram uma urna qualquer e ligam em um local para os representantes dos partidos votarem, só que esses votos não serão contabilizados. E tira-se um mapa no final. Ou seja, os partidos chamam pessoas para votar lá, podem ser dez, cem, mil e com isso você audita. Bateu, bateu… tudo certo. Depois você pode pegar os mapas impressos de cada seção, ir no sistema e olhar os mapas daquelas seções para ver se os números que estão lá batem no TSE.
Quer dizer, você tira as zerésimas no início e os mapas no final…
E esses mapas vão para lá e, se quiser, você pode ver os mapas. Antes da apuração, depois que os softwares foram calculados, tudo foi definido, todos estão autorizados, então se faz alguns testes de validação junto com os partidos políticos, com entidades da sociedade civil. E a partir daí não se faz mais nada, se fecha o código-fonte. Os códigos criptografados são guardados em um cofre até a eleição. Até agora, se você quiser os dados de cinco anos para trás, está tudo lá. Os partidos têm os códigos-fonte, os dados, têm tudo.
“Não é nada escondido. A única coisa escondida são as chaves de criptografia […] senão alguém consegue fazer o reverso.”
Não são um ou dois que ficam com as informações.
Não, não é nada escondido. A única coisa escondida são as chaves de criptografia, não se diz como se gera a chave porque senão alguém consegue fazer o reverso.
No dia da eleição os fiscais de partido também podem verificar as urnas, certo?
Não sei exatamente como, porque isso vai mudando, mas é claro que podem, se encontrarem algum problema em uma urna.
E no caso de urnas com defeito? Vamos imaginar que a urna começou a funcionar normalmente às 8 horas, houve um defeito às 11 horas. Há segurança na totalização do que foi votado entre as 8 e as 11?
É tudo totalizado, não se perde nada porque o voto fica guardado em uma unidade externa. Em caso de defeito, troca-se a urna e na hora do fechamento há um processo para unificar os votos daquela seção.
Não tem jeito de se perder votos?
Tudo é guardado em um meio físico altamente seguro, chamado memory flash, é do tipo da memória do celular, o que se gravou não se perde, você pode recuperar a qualquer momento, mesmo com falta de energia nada se perde.
E quem vai votar e sai dizendo que teclou uma coisa e apareceu outra? É possível?
É possível porque a pessoa, por exemplo, está no Rio de Janeiro querendo votar em um determinado candidato, mas ele é candidato em São Paulo, e aí não aparece mesmo. Agora, o que pode acontecer é a tecla não funcionar. Aí a equipe da seção providencia a troca da urna.
Não é possível se fazer algo para “viciar” a urna para um determinado candidato?
Não, esse software é auditado. O máximo que vai acontecer é dar erro, aí para de funcionar. Mas se mantêm todos os controles, porque o que está lá dentro da urna é um cérebro muito inteligente. Na verdade, normalmente o erro é do eleitor.
“[Hackear é impossível]. Se alguém abrir aquilo é como se queimasse a urna, o sistema simplesmente para e trava.”
E hackear o sistema, é possível?
Impossível. Existe um relógio interno especial que é muito preciso, quando começa a eleição ele desmonta tudo, zera tudo para gerar as zerésimas e todas as partes que são abertas têm um sensor. Se alguém abrir aquilo é como se queimasse a urna, o sistema simplesmente para e trava.
Já se tentou hackear?
Muito difícil porque é um sistema operacional específico, não é um Windows, é um sistema que nós chamamos de RTDOS, todas as entradas da placa-mãe são desligadas, retiradas, soldadas e são colocadas só as necessárias e a do satélite.
Ou seja, ela não é uma máquina que conversa com as outras em uma rede…
Não, não… É retirado o meio de conversar. É como se fosse um disquete. Hoje em dia são USBs e tem uma única entrada e pronto, esse é o único meio pelo qual você “fala” com a máquina. Você não consegue adaptar um teclado, um mouse, nada.
” A transmissão não passa por internet nenhuma, são usadas LPs, linhas privativas que ligam de um ponto a outro ponto.”
E como são enviados os dados da totalização de uma urna para o TRE?
Se envia em um meio físico separado, não é enviado pela urna. O presidente da seção retira esse meio físico, um USB, um pen drive, uma espécie de um chip, antigamente era disquete e depois foi melhorando. O presidente zerou a urna, todos os dados são criptografados nesse chip. E aí a urna e esse chip são levados para onde devem ser entregues na respectiva zona eleitoral, onde existem computadores que irão receber os dados e transmitir para o TRE que, por sua vez, vai transmitir para o TSE. Tem um software específico para a leitura do chipzinho que veio da seção eleitoral, ele vai ler esses dados, vai fazer algumas validações locais para checar se há alguma falha e depois transmite. E tem mais: essa transmissão não passa por internet nenhuma, são usadas LPs, linhas privativas que ligam de um ponto a outro ponto. Existe um único código para estabelecer a transmissão entre os dois pontos, sem ele não pode haver a transmissão dos dados.
Desde o início da urna eletrônica até hoje o processo funciona da mesma maneira?
Claro que hoje, provavelmente com uma criptografia melhor, mas a segurança é a mesma. Os conceitos não mudam, um carro é um carro, um pode ser mais veloz, mais bonito que outro, mas continua sendo um carro. Os problemas que podem acontecer com uma urna eletrônica podem se autocorrigir. Agora, dizer que se pode alterar voto, impossível. A urna é uma unidade independente em sua energia, porque se ela acabar tem bateria, ela só tem um meio de entrada que já é controlado, toda ela é um equipamento fechado, tem começo, meio e fim. Isso resulta em ter tudo salvo, protegido porque é criptografado, colocado em um ponto onde se sabe que a ligação é direta com um outro ponto e tem os seus resultados transmitidos.
Por que o senhor acha que o Brasil está discutindo nesse momento a questão do voto impresso e auditável?
Auditável todo o processo é. E por que se fala em voto impresso? Uma especulação é que, se o voto impresso fosse aprovado, na próxima eleição alguns dos primeiros eleitores das filas das seções seriam eleitores que iriam chegar na urna, votar em um candidato que não seria o deles e “denunciar” que tentaram votar nos seus candidatos e apareceu um outro nome. Aí começaria um grande problema, paralisaria o processo todo.
“Interessa para algumas pessoas colocar o processo em dúvida. É o caminho para se judicializar uma eleição.”
Isso desmoralizaria a eleição…
Essa é a grande jogada do voto impresso. Interessa para algumas pessoas colocar o processo em dúvida. É o caminho para se judicializar uma eleição.
E no que o voto impresso mudaria a transparência do voto?
O que o voto impresso iria adiantar? O eleitor já votou mesmo…
Tem eleitor que diz que quer ver o voto dele lá na urna…
Existe um problema do ser humano, um problema de tato. Tem o sujeito que guarda em casa um “bolo” de dinheiro porque não acredita no cartão, não acredita no banco. É claro que já são 25 anos [com urna eletrônica] e isso já foi sendo absorvido. Mas existem pessoas que têm dificuldades e querem isso. E existem também interesses tanto políticos quanto pessoais em tudo isso.
Como o senhor se sente como especialista, como profissional, por ter participado desse processo de informatização das eleições e da criação da urna?
Tecnicamente, me sinto feliz porque é uma coisa perene. Uma coisa que veio e alterou bastante o nosso processo eleitoral, facilitou o trabalho, melhorou. As pessoas não têm ideia da economia que tudo isso gerou, porque antigamente a quantidade de papel, de urna, de caneta, de horas de trabalho, era enorme. Hoje, isso se reduziu muito, muito mesmo. O processo de informatização reduziu custos em um ambiente importante. Porque às vezes você informatiza e não reduz custo. Então, tecnicamente foi ótimo para todo mundo. E se tornou uma referência nacional. Tudo isso trouxe uma democracia mais leve, mais aberta. Porque antes era confuso. Entravam com recursos, era contado, recontado. Em 1992, eu fiz, talvez, a primeira totalização informatizada em uma eleição. Foi na eleição municipal de Caçapava. O escrutínio foi manual, mas a partir daí inseríamos os mapas nos computadores e o sistema que eu criei produzia os gráficos com os resultados, que foram exibidos em dois enormes telões no ginásio de esportes da cidade. Foi um show. Quando os gráficos começaram a aparecer nos telões o ginásio veio abaixo.
Foi a primeira totalização eletrônica no Brasil?
Não sei se foi no Brasil, mas com certeza eu dei essa ideia na totalização da eleição de 94. Porque depois, quando fui fazer a informatização em Recife, em 94, chamei o pessoal de TI deles e implantamos. Colocamos um telão no centro de imprensa e os jornalistas aprovaram de imediato dizendo que nunca tinham visto tanta informação boa sobre uma eleição. Colocamos outro telão na entrada do tribunal [TRE de Pernambuco].
Chegando ao final da nossa conversa, hoje, na questão do voto impresso e auditável, o que o senhor faria?
Hoje, como se viu, já é auditado, está tudo aberto, é uma questão de as pessoas irem lá, olharem, está tudo disponível.
Apesar de já não existir a equipe original que trabalhou nesse projeto, mas imaginando que ela ainda existisse, o que o senhor faria hoje para melhorar ainda mais o processo eleitoral informatizado no Brasil?
Você quer a verdade? Acho que, em termos de processo nós já chegamos no topo, não temos mais nada o que fazer.
O senhor continua no Inpe. Qual é o seu trabalho atual?
Trabalho na área de engenharia espacial, trabalho com desenvolvimento de satélites, de veículos espaciais, também temos um trabalho em meteorologia na área de descarga atmosférica, porque também sou especialista nessa área.
Ou seja, a criação da urna eleitoral foi um trabalho técnico e o senhor se sente realizado por esse trabalho.
Sim, me sinto gratificado. Não vou dizer que me vanglorio, fiz o trabalho porque é a minha profissão. O que acho é que o resultado desse trabalho, independentemente de quem o tenha feito, foi uma ajuda muito grande ao Brasil em vários setores, mas principalmente para a democracia. Porque acabaram as fraudes eleitorais.