Mais um feriado de Nossa Senhora Aparecida, a padroeira do Brasil para todos os católicos. Como acontece todos os anos e cada vez em maior número, fiéis partem de suas cidades em romaria, sozinhos, em pequenos ou em grandes grupos, formando uma grande corrente humana caminhando pelo acostamento da rodovia Presidente Dutra até chegar em Aparecida, onde a Basílica os espera, imponente e bela.
Opa!! Eu disse “acostamento”? Eu disse “via Dutra”?
Aí é que está o problema. Com mais romeiros competindo com automóveis, vans, SUVs, ônibus, caminhões, carretas e até motos, a via Dutra tornou-se uma estrada “assassina” nos dias que antecedem e sucedem o 12 de outubro.
Chamou atenção, nesses dias, a notícia de cinco romeiros mortos em dois atropelamentos, um no trecho de Caçapava e outro no de Pindamonhangaba. É gente a pé ou de bike que, de dia ou à noite, disputa espaço com os veículos a distâncias às vezes inferiores a 1 metro.
Vivendo perigosamente
Muita gente deve se lembrar de quando as rodovias brasileiras eram um convite aos acidentes e às mortes. Muitas ainda são. Sinalização deficiente, buracos no asfalto, falta de policiamento, imprudência dos motoristas e falta de fiscalização estão entre os principais fatores causadores de acidentes.
A Dutra não era diferente. Houve um tempo em que a penúria financeira do Governo Federal, que é responsável pela rodovia, fez com que, em alguns trechos, a camada asfáltica começasse a dar lugar à terra. Isso mesmo, os veículos passavam e levantavam uma nuvem de poeira na mais importante rodovia do país, ligação entre as duas maiores cidades brasileiras.
Tudo ia de mal a pior até que, em 1996, há 25 anos, veio o Programa de Concessão de Rodovias Federais e a Dutra tornou-se a primeira rodovia do país entregue à iniciativa privada. Desde então, calcula-se que mais de R$ 23 bilhões foram investidos em obras, melhorias e operação da rodovia, além do recolhimento de impostos. Entre 1996 e 2019, foi registrada uma queda de 89,6% no índice de mortes na Dutra.
Mas as melhorias devem continuar. É preciso cuidar da via Dutra de acordo com a sua importância. Em seus 402 km de extensão ela interliga 36 cidades e, por ela, são feitas mais de 772 mil viagens por dia, em números de 2020.
A lei permite?
O pior de tudo é que a lei permite o tráfego de pedestres no acostamento das rodovias. O artigo 68 do CTB (Código de Trânsito Brasileiro) diz o seguinte:
“É assegurada ao pedestre a utilização dos passeios ou passagens apropriadas das vias urbanas e dos acostamentos das vias rurais para circulação, podendo a autoridade competente permitir a utilização de parte da calçada para outros fins, desde que não seja prejudicial ao fluxo de pedestres.”
E a permissão vai além.
“Nas áreas urbanas, quando não houver passeios ou quando não for possível a utilização deles, a circulação de pedestres na pista de rolamento será feita com prioridade sobre os veículos, pelos bordos da pista, em fila e no sentido contrário ao dos condutores.”
O mesmo vale para as áreas rurais.
Mas, ao mesmo tempo, o artigo 254 do CTB mostra o quanto é perigosa a presença de pedestres em meio ao trânsito de veículos. A lei proíbe o pedestre de “permanecer ou andar na rua (exceto quando estiver atravessando de um lado para o outro), cruzar a rua nos viadutos, pontes ou túneis, andar fora da faixa de pedestres, quando existem, passarelas e passagens subterrânea e desobedecer a sinalização de trânsito”.
Considerando-se o altíssimo volume de tráfego de veículos em uma rodovia como a Dutra, será que não está na hora de um deputado federal analisar essa questão e propor à Câmara uma mudança no CTB para proibir a convivência –ou seria a competição?– entre pedestres e veículos no acostamento das rodovias? Ou, no mínimo, definir rodovias com maior volume de tráfego, que passam por áreas urbanas ou onde o pedestre tenha opção de outro caminho e, nestas, proibir a presença de pedestres?
Fé raciocinada
Quanto ao uso cada vez mais intenso da via Dutra pelos romeiros em direção a Aparecida, fica um apelo a todos eles. Não se trata, aqui, de dizer que os veículos têm a obrigação de não invadir o acostamento; ou que os motoristas devem ficar de olhos bem abertos para garantir a integridade física dos pedestres; ou ainda que o direito de ir e vir é assegurado pela Constituição.
A verdade é que acidentes acontecem. E não deve ser encarado como normal que fiéis procurem buscar ou levar conforto, paz, gratidão e pedidos à padroeira e deixem nas mãos dela a sua segurança no trajeto.
Aprendi que a fé cega não é uma boa opção. A fé deve ser raciocinada. Um fiel deve ajudar a divindade a ajudá-lo. Mas, comportando-se de forma inadequada, aí nem a santa ajuda.
Finalmente, fica uma sugestão. Já temos um “roteiro da fé” que começa em várias cidades do interior de São Paulo e Minas Gerais e passa pela RMVale. A exemplo do Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha, o roteiro conduz os peregrinos até o local onde irão professar a sua fé. O caminho “caboclo” passa, aqui na região, por estradas rurais, sem pavimentação, cruzando povoados e propriedades onde já são esperados e bem-recebidos.
Que tal, no ano que vem, os romeiros de Aparecida trocarem a perigosa via Dutra pelo Caminho da Fé? Existem várias opções e todas elas levam ao Santuário Nacional de Aparecida.
Ajude a santa a ajudar você.
> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.