Foto / Diocese de SJC/Reprodução

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

Este pode ser um relato um tanto fantasioso, que hoje até não estranha, diante de fatos incríveis e mesmo não edificantes, vistos diariamente na mídia, a superar a criatividade dos literatos. Ufa, como é difícil lidar com fantasia se a realidade a supera no espetacular e no inusitado. Também no escabroso.

Contudo, o acontecido comigo merece lembrar pelo curioso, não fosse o fundo trágico, sabendo a comédia, que se revelou por breve instante, tendo por objeto não a mim, porém um santo, ou melhor, candidato a tal.

Estava este agora escriba de fraca pena a exercer seu mister de magistrado, sim, em palavras menos formais, juiz de direito, incrédulo leitor, no Fórum de São José dos Campos, ainda no século 20, quando o episódio ocorreu.

Obviamente não me considero um santo e não me refiro a uma pessoa que, aqui e ali, comete algum pecadilho –não crime, é claro– mas santo mesmo, na acepção da Igreja Católica. Aqueles de auréola encimando a cabeça, os das estátuas nas igrejas e altares, colocados nas casas, em peanhas ou oratórios, nas mesas e criados-mudos, a proteger os devotos. Tem aqueles de procissão, nos andores e ainda os santos do pau-oco, em moda no tempo do Brasil colônia, a servir de esconderijo de ouro contrabandeado, alguns hoje militando na política.

Entretanto, desde criança sempre admirei e, confesso, guardava uma ponta de inveja daquelas figuras imponentes e hieráticas, com suas vestimentas antigas, túnicas, alvas, estolas e casulas, enfim, todas aquelas vestes a dar aparência de santo a um simples mortal.

Vale lembrar que São José dos Campos tem o seu santo, ou quase isto, na pessoa do famoso e venerando Padre Rodolfo Komórek. Este missionário padre polonês, salesiano de Dom Bosco, residiu no núcleo de sua congregação nessa cidade, teve notável vida de serviços, com muita humildade ajudando a pobres e doentes, notadamente tuberculosos. Morreu em 1949, mas contam-se as situações milagrosas ocorridas durante sua vida e milagres acontecendo depois de sua morte. Foi declarado venerável pelo Papa, aguardando a comprovação de milagres para se tornar santo.

PUBLICIDADE

Desde logo esclareço que, como juiz, fazia as audiências de toga, como o exigia a lei e o tribunal. Àqueles não afeitos à vida forense, explico que era uma toga simples, preta como de rigor, chegando à canela. Esta toga de juiz de primeiro grau parece mesmo uma batina preta, roupa de clérigos (padres, presbíteros e diáconos), hoje em desuso.

Mas vamos ao episódio. Àquela época havia uma mulher um tanto amalucada, frequentadora assídua dos corredores do Fórum, onde se acessavam as salas de audiências, das secretárias e dos gabinetes. Não me recordo, faz muitos anos, se a pobre coitada tinha alguma querela na justiça ou se simplesmente ficava aborrecendo os escreventes e secretárias com sua conversa desconexa.

Um dia, estava eu em audiências seguidas e cansativas, sempre com paradas periódicas para um respiro, indo ao cafezinho, passando no mais das vezes por partes em processos, advogados e funcionários. Em dado momento, resolvi tomar um café. Saí da sala como estava, com aquela capa preta −para alguns, intimidante−, entrando no corredor onde algumas pessoas se encontravam, porém totalmente despreparado para o que ia acontecer.

De repente, vem uma mulher –a maluquinha– na minha direção, se ajoelha na minha frente e abraça as minhas pernas, dizendo em alta voz, com ar contrito e emocionado: –– Padre Rodolfo, Padre Rodolfo!

A infeliz, no seu desvario, imaginou que o santo apareceu para ela. A situação, que se desenvolveu muito rapidamente, me pegou de surpresa. Fiquei gelado, pode-se imaginar o meu constrangimento, sendo pessoa um tanto tímida e conservadora, com a bendita mulher agarrada nas minhas pernas e todos de olho em mim. Mas recuperei o fôlego e falei as seguintes palavras, certamente guiadas por Deus, ao mesmo tempo em que punha a mão espalmada sobre sua cabeça:

–– Deus a abençoe, minha filha!

Ela largou de mim e mais não disse, nem lhe foi perguntado, como diria o escrevente de sala. Foi-se embora claramente satisfeita e seus problemas acabaram, ainda que naquele momento.

Assim, nesse instante me tornei santo!

 

[Crônica premiada com o 1º lugar do Prêmio Apamagis de Literatura para Magistrados (2ª edição), em parceria com a APL (Academia Paulista de Letras) e UBE (União Brasileira de Escritores). Resultado divulgado em janeiro de 2021.]

 

> José Roberto Fourniol Rebello é formado em direito. Atuou como juiz em comarcas cíveis e criminais em várias comarcas do estado de São Paulo. Nascido em São Paulo, vive em São José dos Campos desde 1964, atualmente no Jardim Esplanada. Participou do movimento cultural nascido no município na década de 60.

PUBLICIDADE
PUBLICIDADE