− Desconfio de Nosso Senhor, com fé, esperança e amor. Desconfio de Nosso Senhor, com fé, esperança e amor! Assim cantava minha irmã, de uns quatro anos, a todos os pulmões, agitando um ramo bem alto, numa procissão antes da Páscoa, domingo de Ramos. Todos os fiéis olhavam, alguns com cara feia.
Como aquela criança desconfiava de Nosso Senhor? Cruz Credo, que heresia, sacrilégio! Ela, na sua inocência, continuava, quase berrando: − Desconfio de Nosso Senhor. Até que uma sacudida de um adulto fez com que parasse, sem nada entender que deveria confiar sim e aprender a letra correta do hino.
Corria o ano de 1955. Vindos de São Paulo, em Santo André papai havia montado uma loja de armarinhos, a Casa Lili. Morávamos no mesmo prédio.
Assim era a vida de uma família católica, então a maciça maioria, de procissão em procissão, ou em outros atos litúrgicos, como o lava-pés ou beijar a cruz, cumprir todos os rituais da Semana Santa, até o dia de Páscoa, no domingo.
Mas antes tinha a malhação do Judas, no sábado de Aleluia. Ah, como era bom malhar o Judas, aquele boneco bem montado, sofrendo todo tipo de pauladas, cusparadas, chutes e xingamentos; às vezes o traidor de Jesus vinha de súbito, das alturas, em velocidade num cabo, explodido em parte por fogos de artifício os mais barulhentos e espetaculares. A garotada e mesmo os adultos ficavam maravilhados, quase ninguém pensava em violência, afinal era alguém com parte no Tinhoso. Alguns procuravam identificar políticos nos bonecos do Judas, mas nem sempre, pois a festa tinha certo cunho religioso. Se a moda continuasse, nos dias atuais faltariam bonecos.
O domingo de Páscoa era o ápice, como ainda hoje, encerrando a Quaresma, a festa da Ressurreição de Cristo. Para nós, crianças −confesso − importava mais o Coelhinho da Páscoa, que trazia todos os anos os ovos de chocolate. Era uma alegria só. Ovos grandes, ovos pequenos, coloridos, com fitas, outros em forma de coelho e brinquedos associados, tudo ficava pronto para ser entregue logo no domingo cedo, da mesma forma feita por ocasião do Natal. Além disso, meus pais escondiam ovinhos, daqueles bem pequenos, em todo lugar da casa, para que as crianças os procurassem numa farra, compondo a alegria dessa data maior. Eram em grande número e todos ficavam aquinhoados. Costume antigo que ainda persiste no tempo.
Curioso como as maiores celebrações cristãs ficaram associadas a práticas que têm origem no paganismo, nos dias que correm ligadas ao consumismo. Assim é na Páscoa, com o coelho e ovos, da mesma maneira no Natal, com o pinheiro e o Papai Noel. O fascínio por esses ícones empana o sentido verdadeiro das datas religiosas, pois a maioria não tem ou perde muita vez a noção dos significados dos eventos e seus objetivos.
Não estranha muito, sabendo-se da atração que, por outro lado, sempre exerceram sobre católicos –eu inclusive, bem assim fiéis de outras confissões− as liturgias, os paramentos, as encenações, os objetos, a vida dos profetas, santos e sacerdotes, os templos, perdendo-se de vista a essência mesmo de cada religião.
Mas, voltando aos ovinhos, certo domingo de Páscoa, eu e meus irmãos mais velhos saltamos da cama e corremos para a competição pelo encontro do maior número de ovinhos, com alegria e barulho. Não encontramos nenhum, procura e procura e nada. Qual não foi a nossa surpresa ao encontrar a mesma caçula cantante, suposta ingênua, sentadinha escondida num canto do armário, cheia de ovinhos ou da sobra deles, com o rosto todo sujo de chocolate, na face o olhar inocente do Coelhinho!
> José Roberto Fourniol Rebello é formado em direito. Atuou como juiz em comarcas cíveis e criminais em várias comarcas do estado de São Paulo. Nascido em São Paulo, vive em São José dos Campos desde 1964, atualmente no Jardim Esplanada. Participou do movimento cultural nascido no município na década de 60.