Faltava pouco para as onze horas quando o homem, fazendo malabarismo para driblar a chuva fria e repentina, esgueirou-se sob as marquises na rua até alcançar o bar. Segurava uma sacola de supermercado, colocada sem nenhum jeito sobre o balcão de pedra. Era João Polenta, habitual no boteco.
Com um guardanapo, ele secou as lentes redondas dos óculos estilosos e estapeou a blusa de moleton com o dorso da mão para livrar-se da molhadeira. Depois de maldizer o tempo, pediu um martelinho de pinga para rebater a friagem.
Esquentado o peito e molhadas as bichas, virou-se e ficou espiando uma animada partida de bilhar que rolava no muquifado salão de cimento queimado. Como jogo e jogadores lhe eram familiares, pitaqueava de aborrecer os contendores.
Quando a última bola do renhido jogo morreu na caçapa, o engasga-gato já tinha produzido efeito. Acomodada no bucho, a “marvada” não fora suficiente para matar a lombrigueira, que só alvoroçou.
Exigentes, as lombrigas queriam mais. Um tira-gosto, quem sabe? João olhou a estufa farta e pediu uma porção de joelho de porco. Regou o prato com uma bem curtida pimenta biquinho e cobriu tudo com boa camada de farinha de mandioca.
Para saciar a sede das bichas e levando em conta o ditado segundo o qual desgraça pouca é bobagem, dessa vez o baixinho abaulado na cintura pediu um lavrado.
Por sugestão do bebum do lado, escolheu uma branquinha das Minas Gerais, sua terra natal. Para certificar-se da qualidade, pegou o garrafão, balangou e cheirou. É boa!, deu o veredicto. O botequeiro serviu com um choro de transbordar o copo americano. E pôs também sobre o balcão uma cerveja barata.
Como de todos era conhecido o jeito como João Polenta sorvia a caninha, o bar inteiro ficou à espreita. Como um ritual, o pinguço pegou o copo, arqueou a cabeça para trás, abriu a boca e virou tudo na goela, numa veizada só. Um feito e tanto, finalizado com um estalido nos beiços.
Ao contrário do restante do bar, que admirou a proeza, em sua mesa de carteado Zé da Rosa meneou a cabeça em desaprovação.
–– Pare de fazer graça, João! Qualquer dia a pinga entra no buraco errado e você morre afogado, advertiu o conterrâneo e também vizinho na rua dos Cambucis.
João desdenhou e ainda brincou de fazer rir a homarada:
–– Ô Zé, e tem jeito melhor de morrer do que afogado na cachaça?
João Polenta encheu o pandu da carne gordurenta e bebeu a cerveja devagar, de modo a empurrar a iguaria. Para respaldar, tomou outro martelinho da “braba”. Ao cabo da empreitada, suava em bicas. Culpa da pimenta biquinho ou da azeitona achada no molho do cozimento.
Depois, por algum tempo a vida seguiu normal, com falatório no bilhar e silêncio no jogo de baralho. Até o cearense dono do bar gritar por socorro:
–– Alguém acuda o João Polenta porque ele vai cair de tão tonto!
Com o corpo embodocado para trás, João tinha uma das mãos pendidas e a outra agarrava a torneira que saia da parede rente ao balcão. Colocado no carro de Zé da Rosa, foi levado para casa onde a mulher, como uma fera, recebeu o gambá e a sacola do supermercado.
Depois de acomodar o marido cambaleante no sofá, a mulher foi conferir se ele tinha comprado o que pedira. E viu que, dos seis ovos da lista, restava apenas um inteiro. Estavam comprometidos a omelete do almoço e o bolo do café.
João Polenta acordou desenchavido no fim do dia. Tomou um banho para curar a ressaca e pôs na boca uma bala de hortelã na vã tentativa de disfarçar o bafo que vinha dos bofes.
Envergonhado, prometeu a si mesmo ouvir o conselho do vizinho sempre que ficar diante de um lavrado de bebida quente. E jurou de pés juntos para a patroa nunca mais entrar num boteco antes de deixar a sacola de compras em casa. Só depois.
> Carlos José Bueno é jornalista profissional (MTb nº 12.537). Aposentado e no ócio, brinca. Com os netos e as palavras.