Existem dois caminhos que você pode seguir com o passar dos anos. O primeiro é ficar se lamentando porque não pode mais comer como antes, beber com antes, praticar esportes competitivos e ainda ter que adaptar a agenda do mais sublime de todos os “esportes”, o sexo. Não ria, você vai chegar lá.
O outro caminho é muito interessante para quem segue por ele. São as lembranças. Para mim, nada do tipo a “primeira professora”, os nomes dos amiguinhos de infância, tudo isso eu juro que sumiu completamente da minha memória.
Mas, talvez explicando a minha “sina” de ingressar no jornalismo desde muito cedo, as lembranças que ficaram comigo são fatos que marcaram a minha vida e a de milhões de pessoas, passando a fazer parte do que a gente chama de História.
Estava perambulando pelos sites e portais de jornalismo em uma noite destas –adoro fugir um pouco do dia a dia cruel deste nosso mundo–, quando vi a iniciativa da Editora Abril de lançar uma edição especial da revista “Placar” sobre os 40 anos do que ficou conhecido como “a tragédia do Sarriá”.
Ela está completando 40 anos exatamente neste dia 5 de julho e só mesmo os “experientes” e os fanáticos por futebol irão se lembrar. Sarriá era o nome do estádio da cidade de Barcelona onde a magnífica seleção brasileira que disputou a Copa do Mundo de 1982, na Espanha, perdeu tragicamente –o termo é esse mesmo– para a Itália por 3 a 2, nas quartas de final, e deu adeus a uma das Copas mais ganhas que eu vi em toda a minha vida.
Por que uma das mais ganhas? Simples. Porque o treinador Telê Santana, que anos depois daria um título mundial de clubes ao São Paulo F.C., formou mais que um time de futebol, ele criou uma fantástica máquina de produzir sonhos. Só para ficarmos no meio de campo, o homem armou o que se chamou na época de “quadrado mágico”, formado por Toninho Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico. Esses gênios eram auxiliados por craques como o lateral-esquerdo Júnior, o ponta Éder e outros, todos de ótimo nível.
O Brasil começou a Copa tomando um grande susto, contra a (ainda) União Soviética, levando o primeiro gol em um “frango” do bom goleiro Waldir Peres. Mas conseguiu empatar com um belíssimo gol de Sócrates e outro belíssimo gol de Éder. Estava tirada a “inhaca”.
Em seguida, vieram shows contra a Escócia (4 a 1), a Nova Zelândia (4 a 0) e a Argentina (3 a 1). Até que surgiram na frente da nossa seleção os italianos, que até aquele momento avançavam aos trancos e barrancos. Diferentemente do Brasil, que tinha até “hino” gravado pelos jogadores, o “Voa, Canarinho, Voa”, na voz de Júnior.
A Itália seria mais uma vítima, é claro. A partida iria acontecer no dia 5 de julho, uma terça-feira, às 12h15min, horário de Brasília –e de São José também. Aí entra o bobinho aqui nesta história. Eu estava com 24 anos, trabalhava no jornal “ValeParaibano” e morava no sexto andar do edifício Versailles, aquele da praça Cândido Dias Castejón, em frente à faculdade de direito da Univap e na diagonal com o tradicionalíssimo restaurante Vila Velha.
Saí do jornal apressado e fui para casa ver o jogo. O normal seria eu parar na antológica lanchonete Vicky, de uma família de angolanos vindos com a Revolução dos Cravos de 1974 em Portugal –Angola era colônia portuguesa até novembro de 1975–, onde eu teria dificuldade de escolher entre maravilhosos filés à parmegiana, à cubana, a cavalo ou outras iguarias daquele lugar que deveria ter sido tombado como patrimônio gastronômico e “comportamental” da cidade.
Mas não, não daria tempo. Então parei na padaria ao lado da Vicky e comprei uns doze pãezinhos, queijo prato, presunto e um litrão de Coca-Cola. Iria ver a vitória do Brasil enquanto almoçava e, em seguida, voltaria para o jornal. Simples assim.
E foi o que eu fiz, ou tentei fazer. Preparei dois sanduíches –sempre comi bem, ou bastante– e comecei a ver o baile do “Voa, Canarinho”. Mas o voo começou como os de galinha. Logo aos 5 minutos de primeiro tempo, o até então limitado Paolo Rossi abriu o marcador para a Itália; Sócrates empatou aos 12 minutos para, aos 25, o mesmo “maledetto” Rossi fazer 2 a 1. Assim terminou o primeiro tempo.
Agora imagine a minha situação. Eu já havia comido os dois sanduíches e, por puro nervosismo, fiz mais um e comi também. Tudo regado àquela maravilha de Coca-Cola.
Só sei dizer que o meu infortúnio começou no próprio intervalo. A ansiedade foi me levando a comer mais e mais. Até que começou o segundo tempo. E eu comendo pão, queijo, presunto e bebendo o refrigerante que desentope até encanamento.
Foi duro, torcida brasileira. Aquela seleção que estava maravilhando os amantes do futebol no mundo inteiro tinha que correr para buscar o empate que lhe daria a classificação para uma das semifinais da Copa do Mundo. Isso mesmo, um simples empate já classificaria o Brasil.
E não é que o grande Falcão tira da sua cartola mágica, que lhe daria pouco tempo depois o título de “Rei de Roma”, um gol maravilhoso, aos 22 minutos da etapa final? Pronto. Estava feita a justiça. Os deuses do futebol não deixariam o Brasil na mão. Até que, acredite se quiser, o “bocó” do Paolo Rossi aproveita um escanteio e um bate-rebate típico dos jogos de “fliperama” da época para fazer o terceiro gol da Itália, aos 29 minutos. Faltariam 16 para a seleção de Telê fazer um gol e continuar na Copa.
Voltemos à minha Coca-Cola e aos meus sanduíches. A esta altura eu já era uma máquina de devorar comida, comendo mecanicamente, lágrimas começando a cair, o ar começando a faltar… até que o jogo acabou.
E eu? Começou em mim uma sensação de que iria “morrer” junto com o Brasil na Copa. Só me lembro de ter conseguido descer até o térreo, tomar um táxi e “voar” para o primeiro pronto-socorro possível.
Pouco tempo depois, já havia sido atendido, medicado e recebido o diagnóstico: disfunção do sistema neurovegetativo. Voltei para casa murchinho, humilhado pelos italianos, com os intestinos doloridos, mas aliviado por não ter tido um destino pior. Acho que voltei para o jornal horas depois, porque naquela época não se faltava em serviço por qualquer disfunção neurovegetativa.
Daquele dia em diante, prometi a mim mesmo que nunca mais iria encarar futebol com a seriedade e o fanatismo com que encarara até então. E vivi muitos anos felizes assim. Até que no fatídico dia 10 de dezembro de 1995, o Santos, meu time desde 1968, ganhou do Fluminense no Pacaembu por 5 a 2 em um jogo inesquecível pelos próximos mil anos. Mas essa é uma outra história.
Minha homenagem para aquele time que, apesar de ter parado nas quartas de final da Copa do Mundo de 1982, é até hoje lembrado como um dos maiores esquadrões do futebol em todos os tempos:
Waldir Peres; Leandro, Oscar, Luizinho e Júnior; Toninho Cerezo e Falcão; Sócrates, Zico e Éder; Serginho. Técnico: Telê Santana.
> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 46 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.