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Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

Desde o início da noite do último domingo (2), uma espécie cobiçada começou a ser caçada pelas ruas, nos bares, restaurantes, clubes, supermercados, lojas e locais de trabalho. Isso mesmo, os alvos da vez são os eleitores que não votaram nem em Lula, nem em Bolsonaro nesse primeiro turno. Agora essa turma passa a ser conhecida como “os neutros”, ou, com um grau ainda maior de maldade, “os isentões”.

Nesse balaio dos neutros estão os eleitores que votaram em Simone Tebet, Ciro Gomes etc. etc., inclusive os 15.784 eleitores que tiveram a coragem –e a liberdade– de escolher o tal Padre Kelmon. Estão também os que votaram em branco, os que anularam o voto e os mais de 20% que não foram votar. É muita gente…

Mas se você está nesse balaio por algum motivo, prepare-se. Até o próximo dia 30, a sua vida vai virar um inferno. Amigos de trabalho vão te olhar feio; colegas de bar e clube vão fazer carinha de ressentidos; até o seu parceiro/parceira é capaz de fazer beicinho e virar a cara por alguns dias.

E você, que só exerceu o direito –para alguns, o dever– de não engolir esta tal de polarização entre esquerda e direita, irá se sentir acuado e ameaçado, como se tivesse feito algo de muito errado. Na verdade, você fez o que uma eleição democrática lhe permite: votar no nome da sua preferência, ou em branco, ou anular, ou ainda não ir e justificar a ausência.

Desde o surgimento desse fla-flu entre lulistas e bolsonaristas, vem ocorrendo uma espécie de patrulhamento ideológico no país, algumas vezes discreto, outras até agressivo. Os mais ousados criaram o termo “isentões” para tentar constranger quem está fora dessa briga. Um termo ridículo, por que parece que só existem essas duas opções e mais nenhuma outra. Rídiculo…

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Patrulhamento ideológico

O patrulhamento ideológico nasceu no país, pelo menos da minha geração em diante, a partir do início dos anos 70, quando também havia uma polarização política. A diferença é que aquela era realmente uma escolha entre o céu e o inferno, entre o quente e o frio, não havia meio termo. Ou você era governista, ou era oposicionista. Sendo governista, apoiava a Arena (Aliança Renovadora Nacional), que representava o regime militar e seus generais presidentes. Sendo oposicionista, estava do lado do MDB (Movimento Democrático Brasileiro), criado para ser uma espécie de “oposição de fachada”, ou, como se dizia, uma oposição consentida.

A diferença para os dias de hoje é que o próprio regime não dava liberdade aos brasileiros de terem uma outra opinião ou simpatia política. Os dois partidos foram criados pela mesma lei e todas as demais correntes ideológicas foram ignoradas.

Naquele arranjo artificial, o que aconteceu foi basicamente uma acomodação das correntes anteriores ao movimento de 31 de março de 1964, que acabou dissolvendo os partidos então existentes para a criação do bipartidarismo. Do lado da Arena, ficaram políticos de partidos mais à direita (UDN, parte do PSD e outros); e do lado do MDB se acomodaram ex-integrantes de partidos mais à esquerda (PTB, outra parte do PSD e outros).

Talvez ali tenham nascido –ou ganhado força– expressões como “balaio de gatos”, ou “farinha do mesmo saco”. A verdade é que, do lado mais à direita, ficaram aqueles políticos que não conseguem viver fora do poder, ou mesmo os ideologicamente mais conservadores. Mas, do lado mais à esquerda, formou-se uma frente de oposições, onde políticos moderados, como Tancredo Neves e Ulysses Guimarães, tiveram que conviver com comunistas de carteirinha e outros radicais.

Explicando a expressão “patrulha ideológica” daqueles dias. Se você fosse jovem, estudante ou trabalhador, a sua única porta era a do MDB. Se usasse a porta da Arena, estava automaticamente cancelado, como se diz hoje em dia. Ouso dizer que um cara ou uma menina de direita, naqueles anos 70, tinha dificuldade até para namorar.

Se chegasse em um barzinho ou na turma da faculdade, havia uma debandada e a figura ficava absolutamente sozinha, ou no máximo com um ou outro reacionário, como também se dizia na época. Assim funcionava o pelotão de fuzilamento chamado patrulha ideológica.

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As patrulhas voltaram?

A redemocratização do Brasil, iniciada a partir de 1982, 83, com a posse do general Figueiredo e a promessa de abertura política, começou a mudar o quadro. Primeiro, com a permissão de serem criados novos partidos no lugar da Arena e do MDB. Essa “bondade” do regime, na verdade, foi a única saída encontrada para manter o governo militar por mais algum tempo, caso contrário o MDB tomaria o poder pelo voto já na eleição seguinte. Ou seja, o governo tentou dividir para continuar reinando.

No lado da oposição, foi uma grande festa. Desde 1979, com a lei de anistia em vigor e ao som de “Tô Voltando”, dos compositores Paulo Cesar Pinheiro e Mauricio Tapajós, na voz da cabeluda Simone, começaram a voltar ao país exilados –por lei ou por conta própria–, como Luiz Carlos Prestes, Leonel Brizola, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, Miguel Arraes, dentre muitos e muitos outros. Como previa o governo Figueiredo, eles começaram a reorganizar os antigos grupos, enfraquecendo o MDB e dando uma sobrevida ao governo.

Dali em diante, o número de partidos políticos foi crescendo, cada gato foi miando para o seu balaio próprio, as eleições foram se sucedendo, veio a Constituição de 1988 e, enfim, conquistamos a normalidade democrática. Com isso, as patrulhas ideológicas desapareceram. Mas se enganou quem achou que elas acabaram…

Bastou a direita brasileira voltar a se organizar, agora em torno de Jair Bolsonaro, para ressurgir um discurso em que a esquerda pede união “em torno da democracia”. Foi a partir daí que essas novas patrulhas ideológicas cunharam o termo “isentão”. A intenção é discriminar, humilhar, constranger quem ouse pensar diferente. Uma violência.

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E a liberdade?

Neste segundo turno da eleição para presidente da República, a atuação dos patrulheiros de plantão promete ser implacável. Os neutros serão caçados como bichinhos assustados, até que se rendam aos perseguidores e murmurem: “Ok, meu voto é do Lula”, ou “Ok, meu voto é do Mito”.

É evidente que cada um tem o direito de votar em um dos dois nesta decisão. Tem até o direito de ter votado no Bolsonaro e trocar pelo Lula, ou ter votado no Lula e mudar para Bolsonaro. Ninguém tem nada a ver com isso.

Mas eu tenho de lembrar que existem outras saídas. Se você não consegue se sentir à vontade para votar em Bolsonaro ou em Lula, aguente firme. Não foi você quem inventou essa polarização. Aliás, muita gente vem trabalhando nela há bastante tempo para criar exatamente esse quadro do próximo dia 30.

Você ainda tem três opções para este segundo turno: votar em branco, anular o voto ou justificar a ausência. Partindo-se do princípio que as eleições deste ano estão sendo realizadas dentro das regras, cada um tem a liberdade de decidir com absoluta liberdade o que deseja fazer.

Mas e quanto ao patrulhamento, ao cancelamento? Seja firme:

– Vão procurar as suas turmas e não me encham o saco!

 

> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 46 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

> O arquivo foi alterado às 18h30 do dia 4/10/22 para substituição da foto de capa.

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