Foto / Pixabay

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

1

Dia 4 de fevereiro, uma sexta-feira. O corpo da idosa Marinella Beretta, de 70 anos, foi descoberto mumificado, em uma cadeira, mais de dois anos depois de seu falecimento. Ela foi encontrada em sua casa, na cidade de Como, região da Lombardia, no norte da Itália.

A idosa não tinha parentes próximos e foi descoberta quando a polícia foi ao local para verificar o risco de queda de árvores no jardim da residência. Foi apurado que os vizinhos não a viam há pelo menos dois anos e meio.

2

Dia 18 de janeiro, uma terça-feira. O fotógrafo suíço René Robert, de 85 anos, conhecido por retratar algumas das estrelas de flamenco mais famosas da Espanha, morreu depois de sentir-se mal e escorregar durante caminhada noturna por um bairro movimentado da cidade de Paris, onde morava. Após a queda, por volta das 21h, ele ficou por mais de nove horas na calçada, a uma temperatura de 3°C, mas ninguém parou para socorrê-lo. A causa da morte foi traumatismo craniano e hipotermia.

PUBLICIDADE

3

Dia 2 de fevereiro, uma quarta-feira. Durval Teófilo Filho, 38 anos, funcionário de um supermercado no município de São Gonçalo (RJ), é morto pelo vizinho, o sargento da Marinha Aurélio Alves Bezerra, ao chegar em casa. Atingido com um primeiro tiro na perna, Durval avisou que era morador do condomínio, mas o militar atirou pela segunda vez, acertando seu abdômen. Ainda fez um terceiro disparo, que não atingiu a vítima. O atirador alegou que confundiu o vizinho com um ladrão. Durval era negro e a viúva suspeita de crime de racismo.

4

Dia 24 de janeiro, uma segunda-feira. O jovem Moïse Mugenyi Kabagambe, 24 anos, nascido no Congo e membro de uma família de refugiados do país africano em razão de conflitos armados e desrespeito aos direitos humanos, é encontrado morto na Barra da Tijuca, na zona oeste do Rio de Janeiro.

Segundo familiares e amigos, Moïse foi até o quiosque em que trabalhou por três dias para receber pelos dias que não haviam sido pagos. Conforme relatos, o gerente do local se armou de um pedaço de madeira para agredir a vítima. Não satisfeito, teria chamado mais quatro pessoas para ajudá-lo. Os cinco espancaram o rapaz até a morte.

Mesmo depois de morto, o congolês teve as mãos amarradas por trás. Um colega de Moïse, que estava no local, diz ter sido ameaçado de morte caso denunciasse o crime. A comunidade congolesa no Brasil fala em “racismo estrutural da sociedade brasileira”, mas também denuncia a xenofobia como uma das motivações para o crime.

5

Dia 8 de fevereiro, uma terça-feira. Uma estudante do nono período de Medicina do município de Marechal Deodoro, em Alagoas, que não teve seu nome divulgado, fazia plantão na Unidade Mista Dr. José Carlos Gusmão quando deu entrada uma paciente em estado grave.

A estudante não teve dúvidas. Postou em sua conta no Instagram dados pessoais da paciente com foto dos procedimentos médicos adotados e escreveu: “Faltando 10 min para minha hora de dormir, chega mulher infartando e com edema agudo no pulmão e agora já passou 1h30 da minha hora de dormir. Tô puta”.

A paciente morreu. A estudante foi suspensa do estágio.

PUBLICIDADE

Vida, louca vida

O cantor e compositor Lobão já gritava este refrão no final dos anos 80. Talvez, hoje, só o adjetivo “louca” não baste. A vida moderna não é só louca. Em muitos casos, ela é louquíssima, estarrecedora, incompreensível, revoltante, animalizada e, sobretudo, banal.

Fico pensando como foi que chegamos a este ponto e, ao mesmo tempo, tento voltar o máximo possível nas minhas memórias para estabelecer uma comparação entre o passado e o presente. Será que mudou tudo ou o mundo já era assim, porém as notícias não chegavam até nós na mesma quantidade e riqueza de detalhes?

Acho que mudamos. Tenho certeza de que mudamos. Para pior. Pelo menos no Brasil, havia uma grande solidariedade entre parentes, vizinhos e até entre desconhecidos. A morte era respeitada. Os velórios e enterros eram concorridos e quase ninguém deixava este mundo sem as devidas homenagens.

Tenho uma lembrança antiga de como podia ser a solidariedade em uma comunidade. Foi por volta de 1965 ou 66. Eu tinha, portanto, sete ou oito anos de idade. Morava em um bairro chamado Vila Ema, na cidade de São Paulo, colado à mais conhecida Vila Prudente. E minha mãe me deu uma nota de 500 cruzeiros para ir até a quitanda comprar uma verdura que não me lembro qual era.

A rua onde eu morava estava tomada por montanhas de terra porque estava sendo implantada ali uma galeria de captação de esgoto e águas pluviais. E eu, distraído, brincando na terra, acabei chegando na quitanda sem o dinheiro. Perdi. Como minha família não era rica, é claro que a perda se transformou em um problema sério.

Ficamos, eu e minha mãe, procurando a cédula em meio aos montes de terra. Foi quando os vizinhos começaram a saber o que havia acontecido. Minutos depois, juro, uma turma de umas 20 pessoas, entre mulheres e crianças, escarafunchava o trecho de rua em busca dos 500 cruzeiros. A nota foi encontrada, entregue à minha mãe e todos voltaram felizes para suas casas.

Hoje, um idoso morre de frio em Paris porque ninguém, durante eternas nove horas, se preocupou em saber se ele estava bem; uma idosa é “descoberta” morta em sua casa depois de cerca de dois anos do falecimento; um refugiado congolês é espancado até depois da morte por causa de três dias de salário; um vizinho mata o outro fazendo três disparos e diz que achou que fosse um ladrão; uma estudante de Medicina que em breve será médica em um hospital onde você poderá ter que ser atendido, ironiza a morte de uma paciente que “roubou” o seu sono.

Vamos com calma, minha gente. Vamos jogar um pouco do passado solidário que já existiu para melhorar um pouco este mundo insensível em que estamos vivendo.

 

> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 46 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

PUBLICIDADE
PUBLICIDADE

 

> Texto atualizado às 13h53 do dia 15/2/22 para revisão ortográfica e de estilo.