Foto / Reprodução

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

A participação popular não ocorre apenas no período da eleição, pelo voto, com a escolha dos representantes para o Poder Legislativo e Executivo. Embora nem todos saibam, a democracia brasileira não é puramente representativa, ela é uma democracia semidireta, que exige a participação da população em várias decisões.

Os sistemas de participação direta do povo são pouco divulgados ou utilizados, assim a democracia resume-se apenas na obrigação de votar, deixando que as decisões sejam tomadas por meio de seus representantes que, muitas vezes, ignoram o eleitor.

Mas não foi assim que o legislador constituinte idealizou a democracia brasileira. Ao contrário, sendo semidireta, ela é um misto entre a escolha do representante via eleição e a participação direta da população nas decisões do Estado. Basta para isso um exame do texto da Constituição, cujo artigo 1º qualifica a República Federativa do Brasil como um Estado Democrático de Direito tendo como fundamento a soberania popular. O parágrafo único deste artigo deixa claro que “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

Esse poder soberano é exercido por meio de representantes eleitos, assim como diretamente. Isso indica que a democracia brasileira não se resume à eleição dos representantes, pois o artigo 14 autoriza o Legislativo a convocar o povo para resolver outras questões de interesse nacional, mediante plebiscito, referendo e iniciativa popular.

Em outros termos, os representantes são eleitos pelo voto, mas o povo poderá ser ouvido diretamente pelos meios indicados em qualquer situação a ser definida pelo próprio Legislativo. Isso raramente ocorre, exceto nos casos em que o legislador tornou obrigatório, como o desmembramento ou anexação de estados e municípios.

Esses instrumentos são inerentes à democracia direta e poderiam ser utilizados rotineiramente na tomada de decisões, sobretudo porque existem hoje meios eletrônicos e rápidos para detectar a vontade popular. Mas como raramente a vontade popular é aferida por meio deles, não resta outra alternativa senão invocar as liberdades do artigo 5º da Constituição para que o povo grite nas ruas o seu desejo. Este é mais um instrumento da democracia semidireta. Além das ruas e praças físicas, a manifestação popular pode ser externada por meio da internet, ou seja, na “praça pública eletrônica”, que tornou possível ouvir a declaração de vontade como uma nova modalidade de participação do povo nos destinos da nação e parte integrante da democracia semidireta.

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Isto é, a voz do povo manifestada, seja pela praça eletrônica, seja nas praças físicas, são formas de democracia semidireta adotadas pelo legislador constituinte, que não se ateve apenas na representatividade, inserindo, além do plebiscito ou referendo, também as manifestações populares. Isso está claro no artigo 5º, onde se diz que “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”.

A propósito, várias posições têm sido tomadas pela via da manifestação pública porque o parlamento deixa de usar o plebiscito ou referendo. Com isso, as manifestações representativas da sociedade devem ser levadas em conta na tomada de decisões, pois elas são fundamentais, por exemplo, em um processo de impeachment. O impeachment soma um elemento jurídico a outro baseado na vontade popular para afastar uma autoridade que não esteja cumprindo bem suas funções ou atuando na contramão da representação que lhe foi atribuída.

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Também é importante aprimorar o sistema de controle da Constituição para não se ficar restrito às autoridades e à técnica. Isso pode ser conseguido pelo recall judicial, um instrumento que permite a anulação de decisões, por iniciativa da população, quando envolver decisões que sejam contrárias à Constituição ou interpretação distante do texto e dos valores da sociedade, sobretudo em temas de grande repercussão social.

Esse instrumento ajuda a se aperfeiçoar o sistema democrático. Vale destacar que, no processo de interpretação constitucional, já se tem defendido a influência da sociedade. Afinal, um intérprete da Constituição não pode impor sua vontade nem suas ideias, deve inspirar-se no texto da lei e nos valores da sociedade para decidir. Se isso não acontece, cabe ao povo, que é soberano, anular a decisão nos casos de grande repercussão. Ou seja, o povo não é um elemento neutro, é uma força viva no processo democrático que vai direcionar a aplicação das normas constitucionais.

Como diz o jurista Peter Häberle, “Povo não é um elemento referencial quantitativo que se manifesta no dia da eleição e que, enquanto tal, confere legitimidade democrática ao processo de decisão”, deve também ser ouvido em diversos assuntos, inclusive para legitimar o processo de intepretação da Constituição. Com isso, quando o povo delega poder aos seus representantes, isso não implica que eles têm o monopólio das decisões.

Por fim, é hora de se aperfeiçoar o sistema e se tomar consciência de que o povo quer influir nos destinos da nação, não delegando toda a soberania aos seus representantes e resgatando os valores vitoriosos do liberalismo fundados no Estado de Direito e na Democracia. Com isso, é preciso colocar em prática a opção do legislador constituinte, que incluiu na Constituição a democracia semidireta como regime político do Brasil.

Foto / Arquivo pessoal

> Eutálio José Porto de Oliveira é mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP e professor de Direito Constitucional e Teoria Geral do Estado. É desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Autor do livro “O Estado Liberal”, reside em São José dos Campos e leciona na Univap (Universidade do Vale do Paraíba).