Foto / Facebook/Reprodução

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

Naquela casinha branca entre morros a moça olhou de um lado e outro da janela estreita e não gostou. Amolada com a brusca mudança do tempo, correu para o quintal recolher fronhas e lençóis esvoaçantes no varal. Monte de roupa sob o braço, mirou o céu e cravou: vai chover!

Por culpa da pouca chuva e do chão duro e árido, naqueles montes não brotava nada além de cupins e guanxumas. Encarreavam-se meses sem uma mísera garoa para molhar a terra e refrescar o ar. Uma tragédia para quem vivia de plantar e colher.

Dizia-se que a secura vinha do tempo do onça. Mas não por falta de reza! Rezava-se ali até dizer chega. A última chuva tinha caído antes do Ano Novo. Um temporal de fazer caudaloso e barrento o fio d’água que serpenteava aquele vale.

Num piscar de olhos a água em fúria engoliu a estrada, o brejo com a saparia e, sem pedir licença, invadiu os três cômodos da pequena casa, tornando liguento o chão de terra batida. Por pouco não fazendo perecer a mobília daquela gente humilde à beira do caminho que ligava o Melado à rodovia.

Dessa vez, porém, tudo não passou de um blefe de São Pedro, responsável, como se sabe, por molhar a terra e tudo o que nela tem. Num estalar de dedos a carranca indicando chuvarada se desfez, o vento sossegou, os trovões se aquietaram e o cinza do firmamento deu lugar a um azul claro e limpo.

A moça, então, apressou-se em apagar a vela acesa para São Benedito e foi se acomodar no banco na frente da casa. Tinha a esperança de que por ali passasse um cavaleiro para lhe trazer da cidade um pedaço de fumo e um carretel de linha. Encomendas da mãe, dona Ditinha.

Por aquela estrada sertão adentro, depois do decrescer dos morros divisava-se uma vintena de casas rústicas esparramadas até o grotão. Era o Melado, arrebalde distante da cidade vinte e tantos quilômetros.

Ainda por rebocar, no descampado na parte baixa do povoado ficava a capela em honra a São Judas Tadeu, o padroeiro. Na frente do templo, a grande cruz de madeira sobre uma base de concreto era presente do Manequinho, rico fazendeiro da região.

Quem chegava pela estrada enxergava no terrão o pau-de-sebo, o mastro encimado por uma surrada flâmula de São Pedro e, embaixo de uma frondosa paineira, o amarradouro para animais. O chão era pelado, tal o pisoteio, pois no Melado a comunidade podia ser pobre, mas era animada, festeira e feliz.

Naquele arremedo de praça as festas eram costumeiras, decerto para compensar as agruras do tempo. Comunidade de trabalhadores rurais, o Melado festejava os principais santos do calendário litúrgico católico, o que dava uma festa por mês. Às vezes, duas. Tinha até comissão organizadora. Dona Ditinha à frente.

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Divulgar o evento não era problema. Não existia carro de som nem panfleto, mas nada que um cavaleiro sobre um inquieto tordilho não desse conta. Num único dia o mensageiro levava a notícia para as famílias espalhadas por aquele rincão.

O recado era curto. Recitação do Santo Rosário ao meio-dia, seguido da distribuição de farofa de pau e arroz com urucum. No fim da tarde, forró. Para comer tinha que, primeiro, rezar. A senha para ir à panela era um amarrio contendo a vasilha com talher e o nome do rezador. A reza era para encher o pacová do santo por chuva; a comida, para abarrotar o bucho e espantar a tristeza.

No começo daquele junho Ditinha pererecava, com mais três, para dar conta da festa de São Pedro, dia 29, um domingo. Na nova flâmula com o retrato do santo, era sua obrigação cerzir as beiradas para maior durabilidade do pano ao relento e, na véspera, preparar a farofa de pau, comida de bom sabor que, segundo ela, era tiro e queda para afugentar a tristeza –e cuja receita mantinha segredada dos convivas.

Com idade beirando os 50 anos a baixinha e corpulenta Ditinha parecia Maria Fumaça, tanto que pitava. Foi dela a ideia de rezar aos santos por chuva. Desde o começo ela fazia a farofa, que virou tradição. Chamava de farofa de pau por causa da adição de boa porção de raiz de guanxuma, socada e secada ao sol. O lenitivo contra a macambuzice era misturado às farinhas de mandioca, de milho e de banana verde; miúdos de galinha, especiarias, temperos e outros ingredientes.

Naquele dia de São Pedro, o Melado rezou com fé e confiança. Depois comeu farofa à saciedade para explodir de alegria num animado baile na praça empoeirada. E foi dormir à meia-noite sob a cálida luz do luar, para acordar bem cedo açoitado por uma chuva fina e fria.

 

> Carlos José Bueno é jornalista profissional (MTb nº 12.537). Aposentado e no ócio, brinca. Com os netos e as palavras.

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