Foto / Maria D'Arc Hoyer

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

Eu não gosto de visitar cemitérios no Dia de Finados, o que leva desgosto à minha mãe, uma aficionada por compromissos estabelecidos pela sociedade. É uma adepta da frase: “o que os outros vão pensar”. E como sozinha ela não vai, fica triste –e brava– comigo.

Mas essa falta de apreço pela data é coisa minha apenas; eu reconheço, e muito, a importância do gesto como homenagem e, após a covid-19, até para o processo de vivenciar o luto.

Já me peguei especulando, a mim mesmo, o porquê dessa aversão ao compromisso de visitar túmulos e cemitérios na data programada, e calculo, ainda sem ter certeza, que pode ser porque sou sempre a pessoa da família que cuida dos velórios. Desde a notícia recebida, preencher papéis, avisar parentes, escolher caixão, na salinha anexa à administração da funerária, encomendar coroas, avisar mais parentes e amigos. Alguns que nunca nem participaram da vida do defunto, mas, enfim, faz parte da obrigação social.

E faço na hora marcada pelo destino, escolhida pela morte ou pela falta de sorte. Não posso remarcar para um dia à minha escolha. Tenho feito isso muito mais vezes do que gostaria. Talvez seja mesmo o motivo de me rebelar nesta data.

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Você já cumpriu essa burocracia? É um exercício de desapego. Enquanto estamos fazendo isso, vamos nos desapegando das lágrimas, da angústia, da presença daquela pessoa em nossa história. É preciso, realmente, guardar sua dor para mais tarde.

Acho que nesse processo, o cérebro às vezes se engana e guarda o sentimento na caixa errada, e quando você menos espera a caixa se abre, em função de uma nota musical ou de uma placa anunciando uma oferta na rua; coisas aparentemente sem sentido. Quando você percebe, está chorando no semáforo e um motorista buzinando atrás de você.

Quem mandou não chorar na hora certa, no velório, à beira do túmulo. Quem mandou não se despedir como se deve, acolher o luto, abraçar os amigos. A falta disso transforma a ausência em um zumbi abusado, mal-educado que vem dançar com a saudade diante dos olhos da gente, nos momentos mais inoportunos.

Infelizmente, essas questões agora não são apenas minhas e de outros que, como eu, cuidam dos enterros da família. Virou a realidade de milhões de pessoas, impedidas de viver despedidas. O coronavírus proibiu a todos de abraçar até um caixão fechado. De segurar uma mão que se despede da vida. De desabar no choro no ombro do amigo mais querido. Deus, como esses abraços curam e como é cruel ficar sem eles. Sem todos eles. Sem os amados e sem os abraços.

Fico imaginando quantas emoções estão arquivadas nas caixinhas erradas e como elas deverão se abrir por aí, estourando das mais diversas formas. Desde a lágrima silenciosa no meio da festa até o palavrão berrado na cara de um desconhecido por um motivo mesquinho. E isso sem querer pensar em possibilidades mais destrutivas. Emoções não vividas e arquivadas viram bombas imprevisíveis.

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Por tudo isso, esse Dia de Finados se reveste de uma solenidade maior. É uma nova oportunidade de expressão de luto sem reservas. A chance de chorar abertamente sobre os túmulos dos queridos. De trocar uma ideia, contar como tem passado e dizer que a covid-19 está mais controlada, embora ainda perigosa e, portanto, estar ali, em meio a tantas pessoas, no cemitério, é um ato de coragem, até uma prova de amor.

Ah sim, eu visito os túmulos dos meus mortos. Mas prefiro as datas não marcadas, os cemitérios vazios, o sol a pino ardendo na cabeça fazendo as plantas mais verdes e as flores de murta mais brancas. Assim, tudo parece menos triste e, raramente, preciso abrir as minhas caixas, mas se elas se abrirem não tenho plateia e prefiro. Faço minha oração, deposito meu vaso de flores e parto, devagar, passeando entre os jazigos, observando a expressão da saudade de outros.

Dessa forma, a visita me traz paz, reflexões e a aceitação tranquila de que meu lugar um dia será ali também. E ter pelo menos uma certeza nessa vida destrambelhada já é um alento.

 

> Maria D’Arc Hoyer é jornalista (MTb nº 23.310) há 28 anos, pós-graduada em Comunicação Empresarial. Mora na região sudeste de São José dos Campos. É autora do blog recortesurbanos.com.br.