Foto / Skitterphoto/Pixabay

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

Como é que se morre? Desculpe-me o leitor por ter escolhido um tema tão mórbido na primeira semana do ano, quando tudo deveria remeter a esperança, fé, alegrias, planos. Infelizmente, este início de ano dos brasileiros somou um renascimento –a passagem de um ano para outro– a uma amarga despedida, a do cidadão Edson Arantes do Nascimento, o rei Pelé.

Como quase sempre acontece comigo aqui neste espaço, é inevitável não fazer nessas horas uma reflexão sobre o fato do momento, ou seja, a morte, especialmente a morte das celebridades e subcelebridades. No caso, a morte de Pelé, uma supercelebridade, uma estrela mundial, interplanetária.

Nos dias atuais, a morte de um ídolo desta magnitude deixa de ser um acontecimento restrito aos médicos, pessoal de enfermagem, familiares próximos e, principalmente, restrito ao próprio doente em fase terminal. Passa a ser uma espécie de série Netflix para o mundo maratonar.

Os capítulos foram se sucedendo em uma sequência lógica e trágica:

1 – Pelé diz que sua internação é de rotina.

2 – Os médicos do Einstein insinuam que está tudo bem.

3 – A imprensa não acredita e começa a especular mais e mais.

4 – Familiares dizem que está tudo normal, que o nosso ídolo não está à beira da morte.

5 – O próprio Pelé reafirma que está bem e que tem esperança de deixar o hospital rapidamente

6 – Finalmente, o que é raro em casos de tal repercussão, o hospital e a equipe médica abrem o jogo, falam da gravidade da doença e mencionam a fatídica expressão “cuidados paliativos”, uma espécie de sentença de morte.

7 – Filhas do rei ainda tentam dar uma ideia de vida normal, postando imagens junto ao paciente.

8 – O hospital divulga complicações renais e cardíacas somadas à doença oncológica.

9 – Na véspera de Natal, a família –esposa e filhos– reúne-se no hospital. O fim está próximo.

10 – Acabou a “primeira temporada” da série. Edson está morto, Pelé sobrevive e se eterniza na história mundial. A “segunda temporada” será marcada pela interminável cobertura de TVs, rádios, portais e mídia impressa com obituários preparados com a devida antecedência. Virão as declarações de amor eterno, a preparação do corpo, o velório, o anúncio de homenagens com nomes de locais públicos e a mudança no tradicionalíssimo distintivo do Santos Futebol Clube, nome que se confunde com o de Pelé, para ganhar a coroa de um rei entre as duas estrelas que identificam os títulos mundiais dos santistas.

O cortejo do caixão com o corpo de Edson por sua cidade de coração, na manhã desta terça-feira (3), pouco depois de ter sido velado pelo próprio presidente Lula recém-empossado em Brasília, é o evento final até a chegada ao Memorial Necrópole Ecumênica, o famoso cemitério vertical da cidade de Santos.

No Memorial, Pelé ocupará um mausoléu com 200 metros quadrados tendo como piso um tapete de grama sintética. A decoração terá camisas de futebol e duas estátuas de Pelé na cor dourada. O local deverá se transformar em um dos pontos turísticos de Santos.

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A velha morte morreu

Descrito esse espetáculo de devoção e exposição midiática, é difícil não voltar o meu pensamento a um tipo de morte que não existe mais, mesmo se tratando de celebridades. Falo da morte privada, restrita à família, aos vizinhos, aos amigos.

Quem abordou com maestria essa morte tradicional foi o dramaturgo e jornalista Nelson Rodrigues. Em sua inigualável capacidade de criar histórias, personagens e climas, a morte esteve presente em várias de suas obras, parecendo quase uma obsessão.

Na velha morte de Nelson, entre o início e os anos 60 ou 70 do século passado, o defunto era tratado quase como um convidado que deveria cumprir bem o seu papel. Dentro de um caixão cercado de flores e velas, ele ocupava o centro da sala da família. Teria de suportar várias etapas do script da época.

1 – A viúva deveria chorar, chorar muito, quem sabe até passar mal em alguns momentos, especialmente o do fechamento do caixão para seguir até o cemitério.

2 – Vizinhas prestativas deveriam, ao mesmo tempo, funcionar como carpideiras puxando rezas, emitindo longos suspiros, chorando e explicando os detalhes da morte aos que chegavam. Em outros momentos, faziam os providenciais cafezinhos para manter todos acordados.

3 – Sim, porque nos velórios de antigamente não bastava, como hoje, fazer uma “figuração” durante uns 15 minutos, dando pêsames aos familiares e assinando o livro de presença. Velório raiz exigia que todos passassem a noite junto ao falecido, contando histórias, lamentando, homenageando e, às vezes, até revelando alguns “podres” do extinto. Sem contar os piadistas de sempre.

4 – O velório e o enterro exigiam trajes pesados, escuros, que demonstrassem de longe a tristeza que deveriam simbolizar. A viúva e as parentes mais avançadas nos anos envergavam vestidos e todos os demais acessórios pretos que as iriam acompanhar durante todo o período de luto, que em alguns casos durariam meses e até anos.

5 – Segundo Nelson Rodrigues, o sofrimento era obrigatório e não deveria ser escondido, pelo contrário. Morte sem choro, sem gritos, sem desmaios, sem cheiro de vela e flores já murchas, não era morte. E tudo terminava na encomenda de uma bela lápide para identificar o jazigo, de acordo com o poder aquisitivo da família.

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Agora a morte é pop?

Hoje, morrer parece ser o “grand finale” de um perfil no Facebook ou no Instagram. Primeiro, porque em muitos casos basta rolar as postagens do falecido ou de familiares para obter rapidamente um volume de informações suficiente para uma biografia literária, além de um álbum de fotos contendo os melhores e os piores momentos da vida de quem morreu. Algumas pessoas conseguem registrar em fotos e declarações quase todas as etapas de suas vidas até a chegada ao túmulo. Só está faltando o dia em que o último suspiro será também o último post.

Outra mudança, como já disse, são os velórios. Assépticos, comportados, serenos, devem ser vistos como uma formalidade que merece o morto e seus familiares. Realizados em grandes prédios, normalmente mantidos pelas prefeituras, podem receber vários caixões ao mesmo tempo. E também, ao mesmo tempo, podem conviver com atos das mais diversas religiões e crenças, do tipo uma sóbria prece católica, um ritual de umbanda e um canto de hino protestante, tudo junto e misturado.

É claro que estou aqui, como cronista, procurando retratar uma tendência, um comportamento, uma mudança de época, daí carregar um pouco nas tintas dos costumes mais curiosos. Que isto não seja visto como falta de respeito ou mesmo tentativa de criar humor com um acontecimento tão doloroso na vida de uma família e dos amigos de quem está partindo “desta para melhor”.

Penso até que a simplificação das cerimônias fúnebres e uma visão mais conformada da passagem dos entes queridos –que algum dia será a nossa própria passagem– demonstra evolução, equilíbrio e compreensão dos desígnios, sejam de Deus, sejam –para ateus e agnósticos–, o começo, meio e fim de uma existência.

Para finalizar, deixo aqui uma sugestão às empresas que dirigem as mídias sociais, e um alerta aos familiares de pessoas que deixam esta vida: falta dar um ponto final nas páginas e perfis que elas mantinham. Quantas vezes já ocorreu a você estar cumprimentando parentes e amigos aniversariantes e encontrar, no mesmo espaço, gente que já morreu? O pior é quem não sabe disso e estará cumprimentando um defunto.

Afinal, até no Facebook ou no Instagram, quem morreu merece descansar em paz. Concorda?

 

> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 46 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

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