Era domingo de manhã e eu estava estendido no sofá. Tinha dormido bem, mas o dia sisudo pedia menos compromisso e mais preguiça. TV ligada quase sem som e de café tomado, feicebuqueava, com um olho desinteressado no gato da telona e o outro, mais atento, no peixe da telinha.
Na noite anterior, deitei-me perto de 23h. Coisa rara para quem dorme com as galinhas. Culpa de um certo Capitão Kidd e dos seus “Relatos do Mundo”, filme estrelado por Tom Hanks, um cativante ledor de jornais para os moradores de inóspitas cidades do deserto americano dos anos 1870.
Tinha chovido à noite e o céu estava cinza, com densas nuvens, um estorvo para os raios de sol, ávidos por invadir a minha janelona e me abraçar. Na rua, deserto! Mas por pouco tempo. Não demorou e os fiéis começaram a passar para a missa das dez na igreja adiante.
Graças à construção de uma laje, minha casa virou doidice, por dentro e, principalmente, por fora, onde só enxergo bagunça. Montes de areia e pedra, pilhas de tijolos, tábuas e paus amontoados, caixa de massa e resíduos de alvenaria.
Nesse ambiente de escombros em frente da casa, eis que aparece um filhote de bem-te-vi. Cismo ter caído do ninho da pata-de-vaca em frente. Não era tão pequeno que precisasse de cuidados, nem tão frágil que não pudesse se virar. Embora não voasse, dava pulos, ligeiro.
Entretido no celular, eu não tinha percebido o bebê lá fora, equilibrando-se na borda de uma lata. Meu filho, que tinha se levantado mais cedo para dar um grau na moto comprada recentemente, foi quem me alertou para o drama da avezinha, ali, sem conseguir ascender ao ninho. Por isso, ficava de um lado para o outro, inquieta, com medo.
Saltei do sofá onde curtia pasmaceira e, da sala, pude vê-la. Pedi para o meu filho fotografá-la aproximando-se o máximo possível; mas com o cuidado de não estressá-la. Fui me arrumar para também ir à missa e esqueci o bicho.
À tarde, depois do cochilo restaurador, antes do futebol, atinei-me para a pequena ave; espichei os olhos para os escombros e… surpresa!!! Ela estava lá, sob a chuva fina, pezinhos cambaleantes sobre um pedaço de madeira.
Sem muito poder fazer, espalhei porções de frutas por seu provisório habitat, e limitei-me a observá-la. Vez ou outra a mamãe bem-te-vi pousava ao lado com um lanchinho no bico, na forma de inseto ou minhoca. Às vezes o filhote dobrava os cambitinhos simulando impulso para um voo em direção à árvore em frente. Mas, cadê força? Gastava as energias piando. Um pio forte, insistente. Quase um choro.
A noite caiu e o remédio foi o bichinho dormir naquele amontoado. Se precisasse se proteger de algum bichano, que nas sombras ronda o lugar, poderia se embrenhar entre as madeiras e tijolos; e se abrigar da chuva sob um plástico preto esvoaçante.
Fui para a cama pensando no filhote de bem-te-vi. Na segunda-feira bem cedo, ao abrir a cortina, a avezinha estava no mesmo lugar, sendo assistida pela mãe com mais uma porção de proteína. E ficou sobre o pontalete até que os homens da construção chegassem, rudes, ameaçadores.
Mais tarde, vi de cima da laje, aonde tinha ido aferir o serviço, minha neta Júlia, 8 anos, tentando escalar o monte de areia para achar o passarinho. Tinha numa das mãos uma sombrinha rosa, e na outra uma caixa de sapatos forrada com papéis picados, que queria oferecer como cama para o desvalido. Achei o máximo.
Disse ser o seu gesto louvável, mas que havia pouca chance do desassossegado passarinho aceitar a oferta; pedi que não insistisse para não estressá-lo, e me lembrei do dia em que o pai dela, então criança como ela, deu cabo de um porquinho recém-nascido de tanto correr para pegar o bicho, que sucumbiu ao estresse. Saí em seguida.
Quando voltei, encontrei a Júlia sentada na porta da sala. O delicado passarinho tinha se desvencilhado dela e se esgueirado sob um palete com sacos de cimento na garagem, o que me abespinhou, por causa da hostilidade do lugar.
Esta via crucis continuou até quarta-feira por volta de 10h quando, da laje e morrendo de rir, o pedreiro viu na calçada o passarinho dando um drible no gari da recolha do lixo, que queria pegá-lo; e voar, esperto, para a pata-de-vaca.
Como não mais o vi, deduzo que, enquanto você lia esta crônica, ele estava em outras plagas, cantando alegremente. Bêeem-te-vi!!!!
> Carlos José Bueno é jornalista profissional (MTb nº 12.537). Aposentado e no ócio, brinca. Com os netos e as palavras.