Ilustração / Artsbeekids/Pixabay

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

A audiência seguia nervosa, pois era um processo criminal pesado, vários réus, bandidos perigosos e violentos, trazidos da Casa de Detenção. Corria o ano de 1984, o fórum na bucólica Arujá, grande São Paulo, no cimo de uma colina, perto da Rodovia Presidente Dutra. Eu, magistrado substituindo o titular em férias, ia tenso, em que pese a robusta segurança policial.

Lá pelas tantas, entre a oitiva de uma testemunha e outra, resolvi ir ao banheiro rapidinho. Enquanto eu estava ali tranquilo, de repente ouvi tiros: pá, pá, pá. Gelei, não sabia o que estava acontecendo, muitas hipóteses chegaram à minha mente. Uma delas, aterrorizante, é de que justo eu poderia estar sendo alvo de um atentado. Nada a estranhar, era uma época difícil, de grande criminalidade, rebeliões em presídios, formação de facções criminosas, uma delas uma tal de Serpentes Negras, grupo organizado de presos, embrião de outras em atuação até hoje. No fórum central criminal da Capital já havia tido problema, de ameaças de atentados, causando rebuliço muito grande.

Fiquei uns poucos minutos ali quietinho, matutando o que fazer. Não me parecia, num primeiro momento, uma boa ideia voltar desde logo para a sala de audiências: o risco era grande. Contudo, pus os pensamentos em ordem e resolvi enfrentar a situação, até porque seria a conduta mais honrosa.

A caminho da sala veio o escrivão esbaforido, dizendo logo que foi uma tentativa de fuga de um dos temíveis presos, que se livrou não sei como das algemas e saiu em disparada. Foi detido depois de disparos de advertência dos policiais militares, ninguém se feriu. Ufa! Alívio, mas o susto foi grande.

Isso não é incomum na vida de um magistrado, faz parte dessa vida profissional, lidando com bandidos ou com gente furiosa, muitas vezes.

PUBLICIDADE

Certa feita, anos depois, já como juiz titular de vara cível em São José dos Campos, quase fui esganado por cidadão, em audiência de oitiva de interditando. Haviam pedido a curatela da pessoa, que alegavam não estava em seu juízo perfeito. Não estava mesmo. Fui interrogá-lo em sua residência, o que se faz quando se alega não haver como o requerido ir até o fórum, por vários motivos. Eu perguntava e o louquinho não respondia, só olhava para mim de soslaio, com a cara fechada. Era um sujeito forte, corpulento, bem mal-encarado, mas não supus que fosse agressivo. Em dado momento o cara deu um pulo na minha direção e, não fosse a ligeireza do escrevente em tirar suas mãos do meu pescoço, eu hoje não estaria contando esta história.

No início de carreira trabalhei por um bom tempo −e intensamente– como juiz criminal. Fiquei designado para auxiliar em varas criminais da capital de São Paulo, onde tive de proferir muitas sentenças condenatórias, algumas com pesadas penas, mandando para a cadeira inúmeros e perigosos bandidos.

PUBLICIDADE

Pois bem, já me havia distanciado desse mister, estando em uma vara cível de São José dos Campos, quando certo dia tive experiência, diria, não muito agradável, para não dizer atemorizante.

Estava eu em São Paulo, dentro da estação do metrô da Sé, voltando para casa, pois havia ido cuidar de assuntos administrativos no Tribunal de Justiça. Já estava anoitecendo, eu andando nos corredores em direção às plataformas de embarque, quando de repente fui abordado por um sujeito de aparência simples. Era um sujeito alto e forte, de maus bofes, como se dizia antigamente. Levei um susto tremendo, já pensando em assaltante, naquele corredor escuro, mas um desagradável arrepio percorreu a minha espinha quando ele me perguntou:

− Ei, o senhor não é juiz?

Respondi:

− Sim.  E me preparei para o que vinha.

− O senhor não está lembrado de mim? Eu sou fulano, o senhor me condenou uns anos atrás a trinta anos de prisão por latrocínio. Já cumpri metade da pena e estou agora no regime semiaberto.

Fiquei como que paralisado, mil coisas passaram pela minha cabeça. Senti o fim próximo. Agora esse sujeito de que eu tinha péssima recordação, pois se cuidava de crime violento, cruel, vai querer se vingar, sei lá. Ele tinha uma cara ameaçadora ou era a minha imaginação diante daquela figura bruta que se apresentava? Não sei nem o que respondi. Fiquei congelado.

Nisso, o indivíduo finalmente me sossegou ao falar: − Puxa doutor, eu puxei cana brava, mas eu merecia. Graças a Deus eu me transformei na prisão e hoje pertenço à igreja evangélica. O senhor fez um bem para mim e eu agradeço muito.

Claramente aliviado, sorri amarelo enquanto ele me dava um abraço. Fui embora com as pernas bambas.

 

> José Roberto Fourniol Rebello é formado em direito. Atuou como juiz em comarcas cíveis e criminais em várias comarcas do estado de São Paulo. Nascido em São Paulo, vive em São José dos Campos desde 1964, atualmente no Jardim Esplanada. Participou do movimento cultural nascido no município na década de 60.

PUBLICIDADE