Hoje, 20 de julho, é o Dia do Amigo. Quem criou esta data? Sei lá. Na verdade, para cada um dos 365 dias do ano devem haver no mínimo dez “motivos” para comemorar. Ninguém se lembra até que alguém entre no Face, no Insta ou no zap para anunciar:
– Hoje é o dia das cerejeiras em flor!
– Hoje é o dia da calopsita de topete azul! –a de topete amarelo é outra data.
– Hoje é o dia do vulcão Krakatoa, o inferno de Java!
E lá vamos nós, hordas de seguidores das mídias sociais, cumprimentar as cerejeiras, as calopsitas, o Krakatoa e tudo o mais que alguém decidiu inventar. Existem datas que são completamente desmoralizadas. Já viu coisa mais chocha que o Dia do Homem? Enquanto o Dia da Mulher quase paralisa o planeta, o dos homens, coitados, beira a humilhação.
Não existe nem certeza de quando é o tal Dia do Homem. Fui pesquisar na Internet e vi ali que o dia dos meninos crescidos deve ser comemorado em 19 de novembro. A explicação soa mais debochada ainda: teria sido uma ideia do ex-presidente da extinta União Soviética, Mikhail Gorbatchov, que pretendeu homenagear homens que haviam se destacado na história do país dele. No Brasil, acredite se quiser, surgiu na pesquisa que o Dia do Homem é 15 de julho –isto mesmo, na última sexta-feira– por causa de uma tal Sociedade Brasileira de Urologia. Muito vexame, melhor mudar de assunto…
Voltando ao Dia do Amigo, a Internet garante que ele foi criado pelo argentino Enrique Ernesto Febbraro, que escolheu a data da chegada do homem à Lua “para mostrar como, juntas, as pessoas eram capazes de superar desafios”. Pior é que na pesquisa também aparece 30 de julho como o Dia Internacional da Amizade. Ou seja, loucura total.
O valor de uma amizade
Peço desculpas por sempre voltar ao passado aqui neste espaço, mas não tem outro jeito, é preciso comparar como tem evoluído –ou regredido– a amizade ao longo do tempo. Dez minutos de reflexões e não tenho nenhuma dúvida: se o Dia do Amigo merece ser comemorado, é pelas crianças e pelos jovens.
Não consigo me lembrar de vínculos mais fortes de amizade do que os que fiz na infância e adolescência. Primeiro, lá entre os 5 e 9 ou 10 anos, quando amigo era toda criança –de preferência do mesmo gênero– que morasse na mesma rua. Era só sair do portão para fora e estavam todos lá, prontos para brincar o dia, a tarde e a noite inteiros até serem “ameaçados” pelos pais se não voltassem para casa. E mais: se um amigo não podia sair para brincar, todo o grupo se reunia em frente à casa do injustiçado como em uma barreira de sindicalistas à frente da fábrica, até que o amigo era liberado.
Depois vêm os amigos da pré-adolescência –dos 10 até os 13 ou 14 anos– e adolescência, que para mim foi até uns 16 ou 17. É o auge da convivência. É quando os amigos formam um pequeno grupo e se preparam para enfrentar o mundo. É quando a solidariedade atinge o seu ponto máximo, cada um saindo de casa comendo um lanche, bolo, doce, fruta, qualquer coisa, e dividindo um “teco” com todos do grupo.
É a época das grandes aventuras, aquelas que não se pode contar nem para os pais. E aí é inevitável contar uma história. Eu morava na rua São Bento, no centro de São Bernardo do Campo, um lugar tranquilo, a uns 700 metros de onde, no início dos anos 2000, o Lula teria um apartamento logo depois de eleito presidente.
O “núcleo duro” dos meus amigos era formado por mim, 14 anos, pelo Marcos (16), pelo Vilson (16), pelo Pedrinho, creio que 14 ou 15, e pelo “mascote”, meu irmão Ricardo, com 12 anos. Os demais eram considerados colegas, amigos éramos só nós, 24 horas por dia, sete dias por semana, etc. etc.
Um belo dia, acho que numa quinta ou sexta-feira do distante ano de 1972, eu, Marcos e Vilson resolvemos radicalizar o domingão com uma aventura heroica: ir a pé de São Bernardo a Santos pela estrada velha, que era a ligação com o litoral antes da construção da via Anchieta. Nós três, mais o meu irmão, éramos aprendizes de atletas, treinávamos voleibol no clube dos funcionários públicos da Prefeitura, que formava times de base imbatíveis na época, em nível estadual. Achávamos que nada era impossível para nós. O Pedrinho ficou de fora porque não treinava nada, não teria resistência física e, pior, morria de medo da mãe, dona Juvência.
No dia seguinte cada um colocou short, toalha e alguma comida na mochila e nos preparamos para o início da aventura, que seria tomar um ônibus urbano por volta das 7 da manhã, que nos levaria até o Rancho da Maioridade, no alto da serra do Mar, construído entre 1841 e 1846. De lá, desceríamos a serra a pé e tomaríamos um outro ônibus em Cubatão para chegar às praias.
Tudo certo, mas não muito. Na hora H apareceu o chatinho do meu irmão com os seus minguados 12 anos e ameaçou melar a coisa toda:
– Se eu não for junto vou contar tudo pra mamãe!
Nem é preciso dizer que decidimos levar o pirralho. E lá fomos nós. Só posso dizer que deu tudo muito certo. Descemos a serra cantando e fazendo bagunça –a estrada era deserta, ninguém passava por lá–, chegamos à praia, jogamos vôlei, entramos na água, exploramos lugares misteriosos, comemos nossos lanches e, no início da tarde, tomamos o caminho de volta.
Era para a aventura terminar com um sonoro “dez!”. Porém, não contávamos com a polícia no nosso encalço. Isto mesmo. Enquanto subíamos a serra a pé, como fomos descobrir depois, soldados da Polícia Militar nos seguiam de binóculos postados lá do alto, de dentro do tal Rancho da Maioridade. Quando chegamos lá, fomos levados quase educadamente para um dos cômodos onde tropas do Império devem ter cochilado bastante e tivemos que explicar o que estávamos fazendo lá.
Era 1972, auge do combate à luta armada no Brasil, todos eram suspeitos. Mas como aqueles quatro não sabiam nem manejar um canivete, os “tiras” acreditaram na nossa história. E ainda nos fizeram uma enorme gentileza. Fomos levados em uma viatura da polícia até a uns 100 metros de casa. Eles ainda tiveram a camaradagem de não denunciar a “viagem” para nossos pais. Resultado: depois de devorar o que havia de sobra do almoço em casa, os quatro heróis voltaram para a rua e ficaram até tarde da noite relembrando as proezas do dia.
Hoje falta tempo
Não fosse a mudança da minha família para o Vale do Paraíba, a partir de 1974, esses quatro ou cinco amigos de adolescência teriam continuado inseparáveis, tenho certeza. Mas o tempo passou e só pude reencontrar, há cerca de dois anos, o Vilson, que tem uma filha e netos morando no Jardim Aquarius.
Tive bons amigos na juventude, na idade adulta e ainda tenho alguns nesta terceira idade em que estou agora. Mas acho que, assim como deve acontecer com você, são amizades menos próximas, mais cuidadosas e afetadas pela falta de tempo dos dias atuais. Mesmo assim, foram e são fundamentais para a nossa saúde mental e emocional. É com os amigos que nós procuramos compreender o mundo, reunir forças para enfrentar os momentos difíceis e comemorar as vitórias alcançadas.
Não sei de que maneira este Dia do Amigo chega até você. Mas, para mim, ao relembrar as muitas amizades e muitas histórias vividas, acho justo modificar levemente a letra do “hino” imortalizado por Milton Nascimento: “Amigo não é coisa pra se guardar / debaixo de sete chaves / dentro do coração”. Amigo é coisa para mostrar, exibir, usar todos os dias e fazer com que as lembranças da amizade estejam sempre vivas e atuais.
Feliz Dia do Amigo!
> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 46 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.
> Texto atualizado às 14h20 do dia 20/7/22, após revisão ortográfica e de estilo.