Foto / Pixabay

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

–– Dou cabo da vida desse paulista mentiroso, sargento?

–– Não se apresse, soldado. Amanhã bem cedo começaremos a abrir as trincheiras, e esse negro, mesmo franzino, nos será muito útil. Amarre-o no galinheiro!  –ordenou.

Por certo não com essas palavras, mas o diálogo teve lugar nos campos da Bocaina, no Fundo do Vale do Paraíba, numa tarde qualquer após deflagrada a Revolução Constitucionalista de 1932.

No dia seguinte a essa conversa sobre a vida ou a morte de um anônimo civil, naquele sertão travou-se duro combate entre as forças getulistas e os insurgentes paulistas.

Com uma baioneta a lhe ferir as costas e debaixo de tapas, pontapés, ameaças de morte e zombarias, o pobre homem foi conduzido pela insana soldadesca para uma noite de infortúnio. Preso ao tronco de uma goiabeira onde dormiam as galinhas, ficou infestado de cocô. Meu Deus, por que tanta humilhação?, perguntava-se.

O personagem em questão tinha na certidão de nascimento o nome de Benedito Torquato, que virou Dito Trocate. Exímio domador de cavalos, não passava de um indolente quando apresentado a outras (e muitas) tarefas do campo.

Dizia-se dele que conversava com o chucro antes da doma. O que por certo era verdade. Ficava a rodear e a dizer palavras ininteligíveis antes de se atirar ligeiro sobre o pelo do animal bravio, para fazê-lo dócil e servil. Como não sabia precificar o seu trabalho, por ele recebia gorjeta.

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“Seu” Dito morava de favor em terras de um rico fazendeiro, que dele nem sempre precisava. Um recôndito, vizinho de um paredão de pedra onde o vento fazia curva. Naquele pedaço de chão tudo lhe era familiar. Grotas, rochas, touceiras, olhos d’água, buracos…

A casa resumia-se num velho cômodo de pau a pique, cujas taipas esburacadas justificavam a fama de preguiçoso do morador. Um puxadinho contíguo, coberto de cumeeiras escurecidas pela fuligem, abrigava o pequeno fogão feito de barro, manuseado irregularmente sobre estacas de pau.

Mobília? Nenhuma. A não ser um catre, um minúsculo banco, uma cadeira cambaleante e uma mesa tosca, além de um oratório com múltiplas e indecifráveis imagens. Tudo simples como o morador, um negro de meia-idade, de viver solitário, que não conhecia escola e não sabia o que era calçar os pés com uma mísera botina, mesmo nas poucas idas à cidade.

Pego de surpresa depois da madorna e antes da costumeira reza do terço, o roceiro não teve como evadir-se. Rude, a patrulha de soldados leais a Getúlio Vargas queria informações sobre as tropas paulistas que, obviamente, ele não sabia, pois naquele fim de mundo, da guerra tinha ouvido bulhufas.

Rezou atado ao tronco da árvore. E rogou a Nossa Senhora Aparecida, de quem era devoto. Certo de que seria morto depois do trabalho bruto, tinha decidido fugir na primeira oportunidade –com ajuda da santa.

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O dia começou antes das quatro horas. Dito Trocate pôs-se de pé sob gritos e intimidações. Livrou-se como pôde da sujeira das galinhas e, munido de uma chibanca, juntou-se ao grupo encarregado de cavocar as trincheiras. Só ele de civil.

Enquanto cavava, rezava, pedindo para não morrer no buraco que cavou no quintal de casa. Advertido a todo instante de que seria morto ao final da tarefa, sofria tortura física e psicológica.

Naquele dia, antes dos primeiros raios de sol, a tropa getulista viu-se desnorteada sob intensa chuva de morteiros e tiros de canhão, guarida para o avanço da infantaria inimiga. Ante o quiproquó, “seu” Dito correu como um raio para uma densa mata, de onde alcançou um buraco abandonado por uma família de queixadas.

Ali ficou três dias escondido, ouvindo explodir os artefatos e bebendo água do orvalho que juntava nas viçosas folhas de taioba, a poucos metros de onde se acoitou. Depois, fugiu para a casa do dono daquelas terras, na cidade, onde ficou até o fim do conflito, em outubro do mesmo ano.

Voltou para a vidinha insossa no meio do nada. Onde ficou até o dia em que, velho e sem forças, foi levado relutante para um asilo numa das cidadezinhas brotadas à margem da estrada de rodagem que ligava o Rio a São Paulo.

Para as raras visitas que recebia no internato, Benedito Torquato desentranhava as agruras sofridas na guerra. Temente a Deus, dizia, com peculiar simplicidade, ter perdoado os seus algozes; mas sem disfarçar certa mágoa, ferida que resistiu ao tempo e só curou com sua morte, dias antes de completar 90 anos.

 

> Carlos José Bueno é jornalista profissional (MTb nº 12.537). Aposentado e no ócio, brinca. Com os netos e as palavras.

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