Se o texto é jornalístico, a escrita deve ser clara, de fácil entendimento. É como aprendi. Já nos contos e crônicas me é permitido viajar no mundo das palavras.
As palavras estão para mim como o quarto de brinquedos, em minha casa, está para meus netos. Com elas eu brinco. Na descrição de um poste, por exemplo. Podem ser de luz ou da política, conforme vejo. O primeiro a luz emite, o segundo a verdade omite. Com raras exceções.
Conheci um político que, pelas palavras, elegeu-se deputado à Assembleia Legislativa de São Paulo e, por causa delas, foi cassado. Foi vulgar e grosseiro no uso do léxico. Mereceu ter o mandato passado na lâmina. E pelo que falou, não merece ter o nome grafado aqui. E não me peça para falar, mamãe!
E o que dizer desses conjuntos de palavras: “Quer bater em mulher, vá para outro lugar” e “Serviço doméstico é coisa de mulher”. Obscenidades. No verdadeiro sentido das palavras. Saíram da boca de um candidato a presidente, chamado de encantador de serpentes por uma língua afiada.
Fosse o outro a dizer tal baboseira, seria sexista e machista, e o pau teria cantado no vão do chifre por um mês. Mas, como foi “o cara” –como certa vez cravou sobre ele Barack Obama– a imprensa que tem lado aliviou e a turba feminista achou graça e se calou. Na verdade, a boca fala do que o coração está cheio, conforme diz o evangelista São Mateus.
Mas, voltando ao fluxo, eu não poderia me esquecer do Geraldo, o iletrado motorista da Kombi que me levava para estudar em Mogi das Cruzes. O passar dos anos deu-lhe intimidade com os passageiros. Perua por lotar, ele sempre dizia ao embarque do Rabelo:
– Rabelo, não quero nem vê-lo…
E arrematava com verbo e pronome em forma de rima, alguns sem nexo, outros, impublicáveis, mas com o cuidado de não repeti-los. Rabelo, estudante de Direito, retribuía com outra rima, no mesmo nível, e ninguém reclamava. Era a senha para descontrair ante a longa jornada. São só palavras, dizia o sorridente Geraldo.
Em Mogi tinha na classe um aluno de nome Bil, que eu chamava de biltre. Não com todas as letras, pois se tratava de uma brincadeira. Sempre dava ênfase à primeira sílaba e engolia a segunda, de forma a dissimular, o que não tinha certeza se conseguia. Como ele nunca se queixou, ficou biltre. Por certo não sabia o significado. Se soubesse teria me repreendido.
Como disse, deito e rolo quando o estilo literário permite. Outro dia, numa roda de amigos, alguém disse que lê meus textos com a obrigação de consultar o dicionário para conferir um ou outro verbete. Que bom, fico feliz por ajudá-lo a aumentar o repertório, respondi.
Outro fez comentário parecido no Facebook diante dos “esgualepos” de frango sobrados na panela. Tive que consultar o “pai dos burros”, reagiu. E eu que pensava tratar-se de uma palavra fácil, já que minha cozinheira no Tia Nastácia a pronunciava a torto e a direito. Vai à missa todo esgualepado?, ralhava com o marido, que entendia o recado e ia colocar uma roupa melhor para cumprir o preceito.
Contando as expressões técnicas e científicas, estima-se que a língua portuguesa tenha cerca de 600 mil palavras. Uma sopa de muitas letrinhas, como se diz. Por isso, eu não poderia mesmo saber o significado daquela danada. Então, limitei-me a rir. E ri às escâncaras, achando que o Zé tinha ficado louco, logo ele, com quem eu planejava aprender um pouco. E aprendi.
O ano era 1980. Eu tinha trocado a função de repórter esportivo do “ValeParaibano” pela de assessor de imprensa da Câmara Municipal de São José dos Campos, para onde fui a convite do então jovem e intrépido vereador Bergamo Pedrosa.
Naquele tempo o pomposo prédio da praça Afonso Pena sediava a Casa de Leis, com sessões à noite, às terças e quintas-feiras, para deliberar sobre requerimentos e apreciar projetos de lei, respectivamente.
Menos de um mês na função, ainda me ambientava quando, ao folhear a batelada de requerimentos sobre minha mesa, espantei-me com a ementa de um deles. Diante de uma palavra matreira, que nunca me fora apresentada, levei o pé atrás. Isso é da lavra do Zé, vou ver com ele o que quer dizer, pensei.
O Zé era José Carlos Oliveira, que ascendeu aos mais altos cargos na hierarquia do Legislativo por mérito e competência. Responsável pela secretaria na época, cheguei rindo:
– Quer dizer que o fulano é afanoso?, quis saber.
O Zé deu uma risada e, com a peculiar classe, explicou-me:
– Meu caro Bueno, não é nada do que está pensando. Afanoso deriva do substantivo afã (laborioso) e não do verbo afanar (surrupiar).
Saí da secretaria aliviado. Ele sabe o que faz, imaginei. E sabia. Uma semana depois o fulano respondeu ao vereador autor da propositura agradecendo-o por tão elogiosa menção. E eu tinha aprendido uma palavra de som estranho e sentido dúbio. Mais uma entre as milhares que o Houaiss encerra em suas páginas.
> Carlos José Bueno é jornalista profissional (MTb nº 12.537). Aposentado e no ócio, brinca. Com os netos e as palavras.