Foto / Joédson Alves/Agência Brasil

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

Desde criança ouço histórias sobre famílias arruinadas, fortunas dilapidadas e até mortes por causa da prática do jogo no Brasil, uma prática em que se juntam o descontrole de jogadores e a astúcia das bancas de jogatina. Nos últimos meses, tenho passado por uma sensação de déjà vu: o jogo no país voltou para valer. E salve-se quem puder.

Há quem diga que o jogo nunca deixou de estar à disposição do brasileiro. Não deixam de ter razão. Acho que poucos irão se lembrar do período em que o país era um dos paraísos do circuito internacional de cassinos. Eles se concentravam na capital, a cidade do Rio de Janeiro, e em várias cidades turísticas, principalmente no Circuito das Águas de Minas Gerais.

Esse paraíso da jogatina teve um final abrupto em 30 de abril de 1946, quando o recém-empossado presidente da República, general Eurico Gaspar Dutra, assinou decreto-lei determinando a ilegalidade dos jogos de azar no Brasil, afetando principalmente os cassinos. Dutra alegou que os cassinos eram “nocivos à moral e aos bons costumes”.

Dizem até hoje que a atitude do velhinho foi em obediência a um pedido da primeira-dama, dona Carmela, conhecida como “Santinha” devido ao seu apego à religião.

De 1946 em diante, se as bancas de jogo existiram no país, foi de forma ilegal e clandestina. Gente viciada em jogo se reunia –e ainda se reúne– em locais bem disfarçados, onde varavam noites e noites jogando. Alguns ganhando e muitos perdendo.

Outra modalidade de jogo que não foi vencida pelo decreto de Dutra é o jogo do bicho. Bancado por gente que transita entre a vida legal e o crime, esse tipo de jogo manteve sua tradição de ser aberto aos mais pobres, jovens e velhos, homens e mulheres, que não resistem a fazer sua “fezinha”, normalmente com apostas de baixos valores que não levam ninguém à falência, embora tenham construído fortunas para os banqueiros.

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Para quem acha que o jogo nunca deixou de existir no Brasil, vai aí mais um argumento. A partir do início da década de 1970, o governo federal, apesar do verniz conservador e militarista por fora, cresceu os olhos para arrecadar impostos dos jogadores e criou para isso a Loteria Esportiva, a famosa Loteca, em que os apostadores arriscavam um palpite nos ganhadores de 13 partidas de futebol, ou no empate entre eles.

Foi uma febre que tomou conta do país, com direito a uma “zebrinha” falante anunciando os resultados no principal programa de TV do domingo, o “Fantástico”. Com a Loteca, alguns ficaram milionários, mas o grande ganhador semanal era –e continua sendo– o governo federal com sua sede por impostos.

A coisa deu tão certo que vários novos jogos foram criados na trilha da Loteria Esportiva e também administrados pela Caixa Econômica Federal. Até que o governo empresário ganhou a sorte grande ao lançar a Mega Sena, hoje possivelmente o jogo mais apostado no país.

Tudo levava a crer que o panorama do jogo no Brasil não iria mudar, já que a receita vinha dando muito certo. Apesar disso, empresários interessados na volta dos cassinos, através da legalização do jogo, nunca deixaram de pressionar governos, deputados, senadores, juízes e formadores de opinião. Chegamos aos dias de hoje, quando a impressão é a de que tudo passou a ser possível no Brasil, mesmo com resultados trágicos, e aí estão os cassinos virtuais.

No dia 30 de dezembro de 2023, entrou em vigor a lei 14.790, de iniciativa do governo federal, que regulamentou as apostas de quota fixa, conhecidas como bets, em que o apostador sabe no momento de apostar qual é a taxa de retorno. Rapidamente, as empresas promotoras dessas apostas tomaram conta dos campeonatos de futebol e inundaram de dinheiro um mercado em que convivem influenciadores digitais pouco escrupulosos, cartolas de clubes que fazem qualquer negócio e sabe-se lá quem mais.

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É claro que as encrencas dessa nova enxurrada de jogos de azar no país viriam em questão de tempo. No início da semana, a imprensa soltou a seguinte bomba: no mês de agosto, 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bilhões em apostas via pix para as bets. Acredite: 20% do total do Bolsa Família foi desviado para a jogatina em vez de se transformar em comida e outros benefícios para as famílias.

A chegada desses e de outros jogos ao país –como o notório Jogo do Tigrinho– a partir da aprovação da lei, somada aos jogos já existentes, cria uma perspectiva alarmante. Além da exploração da credulidade de gente sem discernimento e da exacerbação do vício que é uma doença claramente diagnosticável, o país está sendo invadido por escândalos de todo tipo ligados ao novo negócio. Basta citar que em um intervalo de poucos dias, duas “celebridades” tiveram prisão decretada, o cantor Gusttavo Lima e a “influencer” Deolane Bezerra. O primeiro, por sinal, identificado como amigo pessoal do ministro Nunes Marques, do STF. Eu, hein?

Tudo isto por quê? Porque o governo federal é insaciável quando se trata de tirar dinheiro do povo. Com esses jogos, 12% da renda total das apostas e 15% dos prêmios vão para esse monstro devorador de dinheiro que recebe o singelo título de impostos.

E por que mais? Porque parte da sociedade brasileira –na política, justiça, economia, esporte, diversões e outros setores– está infiltrada por defensores desses empresários que estão se lixando se mais gente vai passar fome ou vai à falência com os seus negócios.

Aí eu volto a pensar no que levou o general Dutra a proibir o jogo no Brasil. E fico até imaginando que uma nova dona “Santinha” talvez seja necessária para nos livrar da jogatina descontrolada em que se transformou o Brasil.

 

> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 48 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 23 anos.

 

*Texto atualizado às 9h08 do dia 26/9/24.