Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Difícil não lembrar dos versos desta canção do Chico Buarque e Gilberto Gil quando li, ontem, a história dos 207 trabalhadores braçais recrutados na Bahia para trabalhar na colheita de uva na cidade de Caxias do Sul, lá no distante Rio Grande do Sul. Atraídos pela promessa de alimentação, hospedagem e transporte custeados pela empresa, quando chegaram ao “sul-maravilha”, eles conheceram a dura realidade: trabalho em condições análogas à escravidão.
O pior de tudo é que, como sempre, quem se beneficiava desses escravos modernos, como acontece em todos os casos desse tipo, alegou que não sabia de nada. E mais: disseram à polícia que repassavam R$ 6.500 mensais por cabeça para o responsável pela contratação, um sujeito de 45 anos que recrutava as vítimas em nome de uma firma com o obscuro nome de Oliveira e Santana.
Quanto às empresas beneficiadas, as vinícolas Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi, as pobrezinhas não sabiam de nada, é claro. Ou será que fechavam os olhos? De qualquer forma, caro leitor, fica a sugestão: escolha melhor as marcas de vinho que você costuma tomar para que, junto ao sabor da uva, não venha um desagradável gosto de sangue.
Esse não foi o primeiro caso de trabalho escravo para empresas tidas como sérias. E infelizmente não será o último. O que é preciso é punir sem dó esses infratores e divulgar seus nomes –como a coluna está fazendo aqui como modesta contribuição– para que em vez de “não verem”, passem a “ver”.
Um outro caso que ficou famoso foi o da Zara, grife multinacional de roupas e acessórios com sede na Espanha. Em 2011, uma inspeção do Ministério do Trabalho encontrou 16 funcionários, 15 deles bolivianos, produzindo peças para a multinacional em uma confecção na zona norte de São Paulo. Segundo fiscais, as vítimas chegavam a trabalhar 20 horas por dia em ambientes sem ventilação e com fiação elétrica exposta. Também foram constatadas irregularidades em Americana, cidade do interior paulista.
Nesse caso, a Zara Brasil foi condenada na Justiça e passou anos tentando reverter a condenação, porém sem sucesso. É claro que a multinacional, que cobra altos preços pelos seus produtos, também tentou empurrar o problema para um fornecedor, a também obscura confecção AHA. É claro que ela, a Zara, não sabia de nada, como se aquilo fosse coisa de filhos levados que aprontam e envergonham os pais.
O problema no Brasil é tão sério –é claro que no mundo inteiro também existe isso, principalmente em país pobres e em desenvolvimento–, que o governo federal lançou o Plano Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. E para dar visibilidade aos infratores, criou a lista suja do trabalho escravo, que é divulgada no site do Ministério da Economia. Desta lista consta muita gente boa, como pecuaristas fornecedores dos maiores frigoríficos do país –como JBS e Marfrig –, madeireiros, cafeicultores, aliciadoras de trabalhadoras do sexo, empresários da construção, entre outros.
No Brasil, um país onde até pouco mais de 100 anos o trabalho escravo era legalizado e visto como algo natural, essa mentalidade escravagista atinge até as famílias, as pessoas físicas. Outro caso que me chamou atenção, divulgado dois ou três dias atrás, foi o de uma milionária, que também é “influencer” –detesto esta palavra– de moda com 2,6 milhões de seguidores do YouTube, que se envolveu em um imbróglio com uma pessoa-que-me-ajuda, como costumam dizer nesses casos.
Resumindo: ela contratou uma engenheira, por espantosos R$ 1.500 mensais, para editar seus vídeos que tratam de produtos sofisticados e caros. A mulher trabalhava em um escritório improvisado no apartamento da patroa, onde, além de ter de suportar seu gênio tido como ruim, recebia tarefas como a de limpar o cocô do cachorro da madame.
Tudo aconteceu em 2019 e, segundo a reclamante, meses após ela tentar o suicídio, em meio a um câncer do pai, a crises de ansiedade e pânico e a críticas constantes da patroa. Ah, é claro que a moça foi contratada como MEI, como “empresa”, para ganhar essa fortuna.
Agora, em 2022, a ex-funcionária resolveu contar tudo nas redes sociais, provavelmente insatisfeita por ter conseguido apenas o direito ao vínculo empregatício, mas ter perdido a indenização por danos morais que pleiteava. Já a influencer, que trata de grifes milionárias e chiques nos seus vídeos, resolveu entrar em um bate-boca também conhecido como “briga de lavadeiras” –com todo o respeito às lavadeiras– porque, segundo a notícia, temeria perder suas valiosas seguidoras.
Essa mesma mentalidade eu pude presenciar, um dia, lá na aprazível estância mineira de Caxambu, onde passei várias e boas férias para esquecer um pouco este insensato mundo. As mulheres conversavam animadamente no salão do hotel centenário onde estávamos, até que surgiu a inevitável questão dos serviços domésticos –e o jornalista curioso só ouvindo…
Uma das respeitáveis senhoras à mesa, que compunha um grupo da cidade do Rio de Janeiro –ex-capital do país e berço da escravidão– saiu-se com uma conversa mais ou menos assim:
– Já acertei com a mãe da menina e quando voltar pro Rio ela vai comigo.
Descobri que era mais ou menos assim que sempre funcionou no circuito das águas mineiro, onde desde o início do século XX famílias cariocas de classe média e alta costumavam ir anualmente para a chamada “estação de águas”. Além do clima mais ameno e das águas medicinais, levavam de lá a mão de obra barata e informal que depois se transformava em “quase da família” na Cidade Maravilhosa.
Encerro esta amarga crônica sugerindo a você que não seja conivente com empresas que “não sabem” que seus produtos são feitos com mão de obra análoga à escrava. E nem com gente que quer ”ajudar” a quem precisa “acolhendo” essas pessoas em suas casas, sem nenhum direito trabalhista, é claro.
> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 46 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 21 anos.