Estou iniciando esta crônica poucas horas depois da derrota da Seleção para Camarões na Copa do Mundo do Catar. Quero deixar claro que a adrenalina já baixou, portanto eu não estou cego de paixão como torcedor brasileiro.
Dito isto, vou tentar fazer um apanhado do que o nosso futebol tem vivido, ao mesmo tempo em que eu tenho vivido. Lembro-me quase claramente da primeira Copa do Mundo que o meu limitado cérebro alcança. Acho que já contei algo assim neste SuperBairro, mas, se for verdade, vou rememorar rapidamente.
A minha primeira e escassa memória de uma Copa do Mundo me faz voltar ao ano de 1966, quando eu tinha 8 anos de idade e morava em um local até gostoso chamado Vila Ema, que era –e continua sendo– bem próxima à Vila Prudente, na cidade de São Paulo.
O que ficou para mim da Copa de 66, na Inglaterra, não foram os jogos, confesso que nunca a minha memória me remeteu a eles. Duas cenas ficaram gravadas em mim. A primeira foi a abertura da Copa. Sentado em um sofá gasto e modesto na casa dos meus pais, tive a honra de assistir à cerimônia de abertura do Mundial. Os tocadores de gaitas de fole britânicos desfilando por um campo de futebol nunca mais saíram da minha memória. Tudo em preto e branco.
Outra lembrança da mesma Copa de 66 é mais prosaica, digna de uma cena de filme do neorrealismo italiano que fazia sucesso naqueles tempos. Como um personagem de “Ladrões de Bicicleta”, ou de “Mamma Roma”, tenho muito clara na minha lembrança quando uma multidão de umas 20 pessoas –adultos e a maioria de crianças iguais a mim– bateu palmas no portão da minha casa para anunciar o tal “bolão” da Copa.
O valor da aposta devia ser uma ninharia, até porque a maioria dos vizinhos havia aderido. Foi quando perguntaram à minha mamãe –hoje uma digna senhora de 86 anos–, qual seria o placar do jogo Brasil x Portugal. Ela –meu pai, como sempre, estava trabalhando–, viu que não havia mais placares de vitória do Brasil e disparou uma heresia:
– Tem 3 a 1 para Portugal?
O silêncio que se seguiu foi profundo e quase melancólico. Mas os “especialistas” da rua resolveram aceitar o palpite da mamãe. Pra quê? Foi quase coberto de vergonha que eu vi minha mãe, dias depois, receber um polpudo –para a nossa realidade– prêmio depois da vitória dos portugueses comandados pelo craque Eusébio contra um Brasil pressionado a repetir os dois títulos mundiais de 1958 e 1962. O placar? Exatamente 3 a 1.
Daquela lição de “f…-se” de minha mãe em relação ao “normal”, veio a minha quase imparcialidade quando se trata de analisar as seleções nacionais de futebol. Sempre fui crítico, apesar de que, até pelo menos 1994, no chamado “tetra”, fui escandalosamente dependente do futebol da Seleção.
Dois episódios, também já relatados aqui em crônicas anteriores, me levaram a ser menos fanático pelo chamado “escrete canarinho”, até por uma questão de saúde. Em 1982, fui parar em um pronto-socorro logo após o “time dos sonhos” de Telê Santana e da maioria dos torcedores perder para a Itália do maledeto Paulo Rossi por 3 a 2. Diagnóstico: disfunção do sistema neurovegetativo.
O outro caso não envolveu a Seleção, mas o meu time de coração desde 1968, o Santos Futebol Clube. Tive inúmeras emoções com esse clube fantástico –nem preciso dizer que muitas delas proporcionadas pelo Rei Pelé. Mas o meu limite foi atingido em 1995, quando o Santos, comandado por um craque chamado Giovani, precisava vencer o Fluminense no estádio do Pacaembu depois de ter sido derrotado no Rio de Janeiro.
Os malucos daquela equipe conseguiram vencer os cariocas por 5 a 2 e se classificaram para a final do Brasileiro. Depois, o Santos seria roubado escandalosamente pela arbitragem e perderia o título, mas eu me lembro perfeitamente de ter coberto minha cabeça com vários travesseiros e pedir à minha mulher que me tocasse o braço somente quando terminasse a partida contra os cariocas. Haja emoção!
Daí em diante, decidi trocar o fanatismo no futebol por uma postura diferente. “Que vença o melhor”, esta é a minha conduta desde 95 até hoje, 27 anos depois. Seguindo esse princípio, a Copa do Mundo do Catar não muda nada para mim. Se ganhar, ótimo; se perder, paciência.
Mas confesso que, nem mesmo com todo esse desprendimento, consegui ficar passivo ao ocorrido nesta sexta-feira. Vi o jogo com a minha família, com direito a cervejinha, pipoca, chuva, ventos fortes, raios e trovões durante os quase 100 minutos de bola rolando. No entanto, o que me deixou quase mortalmente ferido foi o gol camaronês, que por sinal eu havia quase previsto para a minha filha. Sofri, mas logo me recuperei. A minha vida atual me torna mais frio e muito mais próximo da ideia de que o melhor merece vencer.
Na próxima segunda-feira a Seleção do Tite vai enfrentar a Coreia do Sul pelas oitavas de final da Copa. O Brasil é franco favorito, é claro, mas nunca vou deixar de lembrar a pisada na bola do treinador Tite –o Adenor Leonardo Bachi–, que há anos ganha nada menos que em torno de R$ 1,6 milhão por mês para ser o treinador exclusivo da seleção que mais ganhou títulos na história das Copas.
Vamos encerrar essa bobajada toda com uma constatação também boba e banal. Assisti à partida Brasil x Camarões só imaginando a convicção do Tite de estar fazendo a coisa certa quando colocou um time reserva em campo. Terminada a partida, não pude deixar de associar o regiamente remunerado treinador a um sujeito que costumamos chamar, no popular, de “cagão”. Fez merda.
Vou ver o jogo desta segunda com a mesma serenidade que, milagrosamente, conquistei. Mas confesso que vai ser difícil engolir, ao longo dos meus próximos anos de vida física e, talvez, dos milhares de anos como espírito imortal, que um treinador da Seleção Brasileira, vencedora de cinco títulos mundiais, colocou um time reserva em campo durante uma Copa do Mundo.
Desde as gaitas de fole inglesas de 1966, nunca vi nada mais esdrúxulo e insólito no futebol mundial. Podemos até ser campões no Catar, mas esta Copa do Mundo está definitivamente manchada pelo sr. Adenor, o Tite, o homem do R$ 1,6 milhão por mês.
> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 46 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.