… alegre a embalar / seu sonho infantil, / oh meu bom Jesus / que a todos conduz / olhai as crianças / do nosso Brasil.”
(Francisco Alves e Rene Bittencourt)
Resolvi escrever sobre as crianças e adolescentes nos dias de hoje ainda sob o impacto de mais um crime, brutal, banal e inexplicável, cometido por um garoto de 13 anos contra professoras e alunos de uma escola estadual da cidade de São Paulo. Saldo: uma professora, de 71 anos de idade, morta, e mais cinco feridos. Todas as vítimas esfaqueadas. É o que as pessoas chamam de “crime besta”, ou seja, sem um forte motivo, uma coisa inexplicável.
E aí, quando comecei a pensar no texto que iria escrever, me veio à mente esta velha canção. Na minha infância, ela já era velha, é bom ressaltar, porque sou velho, mas não sou uma múmia. Gravada pelo chamado “Rei da Voz”, Francisco Alves, a música tranquila, com sua letra ingênua, era cantada em algumas comemorações escolares da minha época de curso primário, ou quando aquelas professoras “chatas” resolviam formar um coral na escola. É uma música brega, concordo, mas sei lá por que, me lembrei dela.
De qualquer maneira, a letra de “Criança Feliz” reflete bem como o mundo olhava para as crianças uns 50 anos atrás. Pequenos seres ingênuos, indefesos, alegres, despreocupados e destinados a uma vida dividida entre estudos e brincadeiras até o final da adolescência. Sempre com obediência aos pais, aos mais velhos e, obviamente, aos professores.
Como imaginar que meio século depois estaríamos vendo, com frequência cada vez maior, essas criaturinhas destinadas à felicidade dando tiros, esfaqueando, lançando bombas contra colegas de escola, professores, diretores e quem mais aparecer. Sem falar nos crimes cometidos no “lar, doce lar” contra pais, mães, irmãos…
Como chegamos tão longe do futuro que todos nós esperamos para nossos filhos, sobrinhos e netos? O que podemos fazer para tentar proteger a sociedade desses meninos e meninas que já passaram do limite e estão mais próximos do Código Penal do que do diploma de conclusão do curso?
Como chegamos aqui?
Não é preciso ser um especialista em pedagogia e comportamento humano para concluir que as crianças e adolescentes –provavelmente em sua maioria– estão crescendo meio que por inércia. Os pais deram um bom empurrão neles assim que nasceram e até completarem os primeiros três ou quatro anos –e acharam que era o suficiente.
Após a fase da amamentação, dos cuidados iniciais, dos primeiros passos, das primeiras palavras, parece que tudo vai se encaixando em uma rotina. Os pais pensam que podem, finalmente, voltar o foco para suas carreiras profissionais, seus passatempos, suas amizades, enquanto as crianças passam a depender das “tias” e “tios”: professores, babás, pediatras, tias do balé, tios da escolinha de futebol, e por aí vai.
O problema é que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Pais e mães não fazem o papel dos “tios” e “tias”, que são instrutores e cuidadores profissionais remunerados. Do mesmo modo, esses “tios” e “tias” não substituem jamais os pais e mães.
É inevitável virem à minha lembrança situações vividas na infância e no início da adolescência. Apesar de terem muito menos recursos materiais, maior simplicidade na alimentação, menos estoque de roupas, tênis e brinquedos, as crianças podiam contar quase sempre com a mãe, que embora cansada das suas tarefas do lar, estava presente. O pai, mais distante devido ao trabalho duro fora de casa, mesmo assim estava acessível nos finais de semana ou nas festas em que se reuniam os parentes e todos conviviam.
Sem querer generalizar, mas quase generalizando, é inevitável perceber que, ao longo dos anos, os costumes foram mudando radicalmente. Os pais passaram a ter cada vez menos tempo para os filhos; as mães deixaram de ser “do lar” para se tornarem um híbrido de profissionais disputando ferozmente posições no mercado de trabalho e, ao mesmo tempo, tendo que fazer as tarefas domésticas; os professores, mais precariamente remunerados do que antes, ligaram o piloto automático para conseguir trabalhar em dois ou três empregos; e o lazer proporcionado pelas escolinhas de esportes e atividades como balé, música, idiomas etc. viraram puro comércio, uma coisa quase impessoal.
E o que resta à criança/adolescente neste novo mundo? Chegar na escola e seguir o currículo rigorosamente planejado; voltar para casa, não encontrar ninguém e mergulhar no mundo de possibilidades infinitas proporcionado pela internet, redes sociais, “games” e outras geringonças povoadas por “aliens”, robôs, super-heróis malvados, animatrônicos, múmias, animais modificados “geneticamente” e, por fim, seres humanos totalmente distantes das características humanas que deveriam ter. Até a antiga empregada doméstica, que “mal ou bem” era considerada “quase da família”, se transformou na “funcionária” ou “assessora” do lar.
É aí, amigos e amigas, que as redes começam a se formar. Enquanto as crianças mergulham no seu mundo de faz-de-conta, no qual todos morrem várias vezes no “game over”, mas revivem magicamente segundos depois em um novo “play”, os adolescentes passam a embarcar em suas viagens em busca de emoções e, talvez, de quem interaja com eles. Algumas dessas viagens podem ser boas, mas outras são “bad trips” que levam seus passageiros para buracos muito fundos, precipícios perigosos.
Daí para os grupos que pregam a violência, cultivam preconceitos, desprezam minorias, aprendem “segredos” sobre armas, planos de ataque, fugas espetaculares, aprendem a odiar o capitalismo e a democracia, é um pulinho. Esses jovens passam a se distanciar cada vez mais da família biológica para se aproximar das “famílias” digitais. Afinal, basta um clique, um “enter”, e “manos” e “minas” aparecem aos montes.
O final dessa viagem já é bem conhecido. Ou o jovem é resgatado por um familiar mais sensível, ou se interessa de verdade por uma atividade profissional, esportiva, artística, ou encontra um par pelo qual se apaixona, ou… permanece à deriva e chega à conclusão de que sua família, escola, amigos e ele próprio são uma m… E qual é a solução para limpar essa m… toda? O menino de 13 anos lá da zona oeste de São Paulo –mencionado no início deste texto– achou que era pegar uma faca e ferir a todos que o feriam ou que o incomodavam.
O que fazer?
Primeiro, não sei. Segundo, não sei. Mas sou xereta e imagino alguns caminhos. Deixando claro que nunca poderá existir uma receita infalível para prevenir a sociedade de todas as agressões contra ela. Mas é possível afastar desse destino a maioria dos que entram nele “de bobeira”, por um “vacilo”.
1 – Shopping centers, lojas, restaurantes, padarias, parques, cinemas, têm vigilância. Escolas também têm que ter. Não importa o quanto isso custe. E não é o “tiozinho”, que será o primeiro a correr de um agressor, falo de vigilância treinada.
2 – Quando uma empresa contrata um novo profissional, vai fundo na vida dele, analisa sua ficha de saúde, seu comportamento, seus hábitos. Um estudante precisa ser submetido à mesma operação. Alguns terão que dividir a escola com um tratamento psiquiátrico.
3 – Capacitação dos profissionais da educação. Todos devem saber como lidar com comportamentos anormais de crianças e adolescentes para poder ajudá-los, em vez de agravar ainda mais os seus conflitos.
4 – Regulação das mídias sociais. Isto mesmo. Criar dificuldades de acesso aos grupos e conteúdos prejudiciais irá livrar, se não todos, uma grande parcela de gente influenciável e de miolo mole. Nesse tópico entram adultos também, é claro.
5 – Desenvolvimento do país. Sim, acho que tem tudo a ver. Aqui me refiro a uma política de reindustrialização, geração de mais e melhores empregos, educação técnica e superior de qualidade, auxílio aos jovens no planejamento de suas carreiras. No Brasil de hoje, especialmente nas periferias, é cada vez maior a cultura do “nem, nem”, ou seja, nem estudam, nem trabalham. O Brasil deve um futuro melhor aos seus jovens.
6 – Justiça levada a sério. Com todos os méritos que possa ter o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), é preciso tratar de forma diferenciada os que não ultrapassaram a fronteira da vida normal e os que enveredaram para o cometimento de crimes. A tal “apreensão” do menor infrator é pouco, as leis precisam ser mais duras, principalmente com os jovens que cometem homicídio. Cadeia neles. Isso mostraria que a vida real não é um “game”.
7 – Finalmente, o que deveria ser o início de tudo: os pais e familiares. Quase sempre, a explicação para a existência de um menor infrator está dentro da sua casa, no convívio –ou na falta dele– com a família –ou pela falta dela. Hoje, muitos pais morrem de medo dos seus filhos. E fingem não ver o que eles fazem.
Caro leitor, cara leitora, se você ainda está aí, peço perdão pelo tamanho quilométrico deste texto. Mas é o mínimo que poderia fazer como uma humilde contribuição para que muitos adolescentes, professores e outros profissionais da educação possam ser salvos de tragédias como a ocorrida na última segunda-feira.
E a canção do início volta à minha memória:
“Crianças com alegria / Qual um bando de andorinhas / Viram Jesus que dizia / Vinde a mim as criancinhas.”
> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 46 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 22 anos.
*Texto atualizado às 14h27 do dia 28/3/23 para revisão ortográfica e de estilo.