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Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

Zeloso ao extremo, a ponto de tirar com o ferro de passar um invisível vinco da indumentária de missa do sacerdote, naquele domingo Zequinha se viu livre dessa tarefa adicional. Os paramentos estavam impecáveis. Túnica branca como a neve; estola e casula na cor verde, predominante no Tempo Comum.

Antes de badalar o sino pela derradeira vez, ele depositou a Bíblia Sagrada sobre o ambão marcando as páginas de leitura com fitilhos coloridos. E aproveitou para, do elevado do presbitério, espiar o público à frente, abarcando com o rabo do olho quem estava em pé nos corredores laterais. Igreja abarrotada, viu muitos que nunca vira na missa. Infiéis! Estavam ali só para matar as lombrigas curiosas.

Caso de dona Mariinha. Com o seu corpo magrelo enfiado num vestido tubinho azul e detalhes dourados, a solteirona de cinquenta e tantos anos aboletara-se no primeiro banco. Famosa por mexericar, tinha ido à missa para, quem sabe!, aumentar o repertório de fofocas; e, sentada quase aos pés da padroeira, persuadir o padre a aceitar um acordo numa demanda que tinha na justiça contra a igreja.

Tanto esforço tinha que valer à pena, pois, para estar ali, ela pererecou para vencer um trecho alagado pela borrasca da madrugada, entre a ponte sobre o córrego e a chácara onde mora, sozinha. Meio alqueire em desleixo, infestado de sapê e capim barba-de-bode.

Já Adeodato, dono do armazém, escarrapachou na extremidade do banco no fundo da igreja, de forma a facilitar a evasão. Rabugento e sovina, o velho foi frequente à missa até um ano atrás, por influência da mulher, que o trazia num cortado. Depois que a companheira morreu, o unha de fome abandonou o costume para não precisar mais pagar o dízimo, nem dar esmolas.

Dizia-se em Cruz das Almas que o muquirana guardava pelotes de dinheiro em caixas de extrato de tomate, que comprava de sobejo para não faltar à mesa a macarronada, prato bom, gostoso e barato. Queijo ralado sobre o molho, nem pensar! Encarecia.

Quando do passamento da mulher, Mariinha chegou a arrastar as asas para Adeodato. Deu até currículo! Mas, sabedor das intenções enganosas da bruaca, o comerciante mandou-a lamber embira, fazendo valer o brocardo segundo o qual é preferível estar só que mal acompanhado.

De repente, Zequinha pôs a mão em continência sobre as pálpebras espremidas e enxergou –veja só!– o professor Felizardo encostado no batente da porta principal. Até ele, comunista de carteirinha, para quem religião, futebol, carnaval e novelas eram formas de alienação, dormência do povo.

Passaram-se dez minutos do horário e nada de a missa começar. Padre Laurindo estava atrasado pela primeira vez desde sua nomeação, pelo bispo, como vigário paroquial de Cruz das Almas, há cinco anos. Lá fora a chuva tinha dado trégua.

A demora suscitou burburinhos e coxixos, obrigando o diácono a intervir, pedindo silêncio e paciência. E justificou, dizendo que o vigário estava a caminho, vindo de Novo Cedro, onde tinha ido dar a extrema-unção a um paroquiano moribundo.

Não demorou muito e padre Laurindo entrou em triunfo pelo corredor central tendo à frente um séquito de coroinhas, diáconos e ajudantes de ordem. A observá-los, Nossa Senhora do Bom Remédio, no nicho principal; e os anjos e arcanjos, em afrescos no teto.

Deu-se a missa conforme o rito. De boa oratória, em sua homilia o padre minimizou o repente do Mestre para escorraçar os vendilhões do templo aos safanões. Ao cabo da celebração, falou o que metade da igreja queria ouvir.

Fora ele a tocar o sino de madrugadinha. Para encafifar a cidade e levar grande número de fiéis à missa, pois tinha grave comunicado a fazer aos paroquianos.

Na noite de sábado, na montada de um touro endemoniado no rodeio de Novo Cedro, um idolatrado peão filho da terra beijou o chão e estava sob cuidados médicos, correndo o risco de morrer ou ficar abobado.

Padre Laurindo concluiu o breve aviso clamando por orações pelo agonizante. Só um milagre para salvar Tobias da Conceição, fazendeiro e pecuarista endinheirado de tradicional família cruzalmense, meritório benfeitor das obras de caridade da igreja.

Orem por um milagre!, implorou aos fiéis. Ante o melancólico apelo, uma corrente de súplicas, ave-marias e pai nossos principiou ali mesmo, entre olhos marejados e soluços incontidos. E a desditosa notícia correu a cidade como rastilho de pólvora –potencializada pela tagarelice de dona Mariinha.

 

[Continua…]

 

> Carlos José Bueno é jornalista profissional (MTb 12.537). Aposentado e no ócio, brinca. Com os netos e as palavras.