Ilustração / Pixabay

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

– A viúva? –E toca o moço, colérico, a responder, com uma frase chula. Muitos se recordam exatamente qual.

Ainda presente na minha memória a voz pausada, denotando desde logo um déficit mental, do Elias da Viúva, alegria dos garotos que arreliavam o coitado pelas ruas, passatempo algo cruel da moçada de São José dos Campos, décadas atrás. Mas como era engraçado mexer com o pobre rapaz, estigmatizado pela excepcionalidade, que provavelmente tinha uma boa viúva para cuidar de si:

– Como é que é, Elias, e a viúva?

E toca correr, porque o moço virava fera, vinha para cima mesmo, soltando verdadeiro rosário de palavrões.

Por falar em Elias –a quem alguns alunos chegavam a dar pinga– havia uma plêiade de amalucados pela cidade, vultos infelizes a vagar, debochados por uns, maltratados por outros.

Havia a Maria Regimento, mulher idosa, provavelmente esquizofrênica, que adorava soldados, marchas e, nos seus desvarios, só via regimentos, batalhões, companhia, enfim, parada completa, daquelas de Sete de Setembro. E lá ia dando ordem unida pela Rua Quinze de Novembro.

E quem não se lembra do Luiz Vortinha, aquele infeliz que era visto diariamente nas praças, como no Jardim da Preguiça ou Praça Cônego Lima –hoje não tem jardim nem preguiça– com curiosos movimentos de corpo, cômicos, não fossem trágicos. De repente, ao andar, dava uma guinada brusca de corpo, voltando no caminho que viera, chamando a atenção dos passantes. Ouvi dizer que ficara assim de tanto estudar: mito urbano do estudante preguiçoso.

Tinha ainda o Pezão ou Pelão, aquele que possuía uma hipertrofia no dedo do pé; o Bastião Touro, velho de capote, esmoleiro. Diziam que era rico, tinha casas de aluguel na Vila Ema. Outra lenda urbana que se criou em torno de um doido ou alcoólatra, com nenhuma correspondência com a verdade. Sumiram, provavelmente já falecidos. Na Vila Ema, aliás, tinha o Jânio Quadros, imaginem!

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Engraçada, para nós que estudávamos no João Cursino lá pela década de 1960, era a Vandeca, velha amalucada, mas de contagiante alegria. Seu prazer e divertimento dos estudantes era dançar junto aos alto-falantes das casas de disco da Rua Quinze, de preferência músicas do Roberto Carlos, de que se confessava amante. Afinal, não era ela a Vanderléia?  Seu projeto, dizia a todos na sua maluquice, era montar uma boate em São José, com umas meninas novas, deixava bem claro.

E o coitado do Feio, também conhecido como Jacaré, garoto paupérrimo, retardado mental, cuja feiura de espantar só não era maior que os cruéis divertimentos dos rapazes com o infeliz, vítima complacente das brincadeiras, algumas de mau gosto.

O Toucinho ainda se via poucos anos atrás, de sacola de feira na mão, guarda-chuva pendurado no braço, berrando pelas ruas, fazendo das mãos uma espécie de megafone, anunciando suas loucuras como um feirante ambulante.

Mas, pensando bem, ouvi dizer que todos nós temos um pouco de loucura escondida; aliás, cada louco com sua mania. Cada um até teria dentro si um maníaco, um assassino, um tarado. Sei lá se existe alguma verdade nisso.

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Prefiro acreditar em meras neuroses, como transtorno obsessivo compulsivo (toc), que parecia ter um amigo. Acabou com uma mania esquisita: de tanto praticar datilografia, aprendendo aquele tedioso “asdfghjklc”, a repetir, repetir; depois, como escrevente, batendo à máquina horas e horas uma papelada sem fim.

Aos mais novos, esclareço: não havia computador. Eram aquelas máquinas de escrever, não eram elétricas, nem eletrônicas ainda.  Era preciso que se batesse com algum vigor; às vezes, encavalavam os tipos, outras vezes acabava a fita de impressão e toca a trocar por uma fita nova, a velha já havia perdido a tinta.

Esse amigo, o Beldroegas −vão chamá-lo assim− trabalhava em um cartório de São José. O dia inteiro datilografando, laudas, laudas e mais laudas. À noite, exausto, tudo o que vinha à cabeça ele datilografava mentalmente. Sim, se ele pensava: “como estou cansado”, ao mesmo tempo datilografava esta frase mentalmente! Isso quando não fazia os movimentos no ar.

Um dia, estava eu a conversar com o infeliz do Beldroegas e ele fazendo a sua datilografia aérea e mental. Ele contava, desanimado, da sua rotina estafante e enlouquecedora diante da velha Olivetti. E me confidenciou a mania de datilografar seus próprios pensamentos. Falava cada vez mais devagar, até que parou no meio da frase. Ficou olhando fixo, para frente, sem nada mais falar, nem gesticular, os olhos opacos. Fiquei atônito e perguntei: “Beldroegas, o que aconteceu, cara?” Passados alguns segundos, ele falou com uma vozinha fraca, do além: “É, Zé, acabou a fita”. E mais não disse, nem lhe foi perguntado.

 

> José Roberto Fourniol Rebello é formado em direito. Atuou como juiz em comarcas cíveis e criminais em várias comarcas do estado de São Paulo. Nascido em São Paulo, vive em São José dos Campos desde 1964, atualmente no Jardim Esplanada. Participou do movimento cultural nascido no município na década de 60.

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