Há mais de 40 dias tivemos o segundo turno das eleições no Brasil e conhecemos os vencedores. Já se esgotaram quase todos os prazos para apresentação de recursos na Justiça Eleitoral e os eleitos tomarão posse daqui a menos de 20 dias. Entendido? Para alguns, não…
É impressionante o declínio de uma grande parcela da sociedade brasileira nos últimos anos. Declínio emocional. É gente que fica emburrada, que diz que não aceita, que se coloca como vítima do “sistema”, que briga com parentes e amigos e que coloca o seu futuro nas mãos de “líderes” dos quais pouco ouviu falar.
Imagine você que essas pessoas, fora desse estado de paranoia, trabalham, estudam, pagam suas contas, cuidam de suas famílias, frequentam igrejas, templos e outros espaços religiosos, dividem com os “normais” os supermercados, shoppings e lojas, estão lado a lado conosco no trânsito. Ou seja, é gente que, se não abrir a boca para falar das suas ideias sobre política, não se vestir como escoteiro adulto e nem te olhar feio na rua, você vê como pessoas normais.
É por isso que eu estou pedindo ajuda ao “pai da psicanálise”, Sigmund Freud –que todo mundo pensa que era austríaco, mas, na verdade, nasceu na Morávia, atual República Tcheca. Estamos precisando do senhor aqui abaixo da linha do Equador, nesse país onde tudo acabava em samba, onde o futebol era o refúgio para as massas esquecerem seus problemas. Doutor, digamos que este povo está acordando –o que deveria ser muito bom–, mas acordando sem conseguir se livrar dos seus pesadelos.
Enquanto o famosíssimo Freud não explica nada, vou tentar ajudar o velho médico a entender o que está acontecendo para, quem sabe, nos ajudar:
– Temos um país funcionando normalmente. Os três Poderes –Executivo, Legislativo e Judiciário–, mesmo com os problemas que nós já conhecemos, estão em plena atividade. O Estado democrático de Direito está em vigor no Brasil.
– O Poder Judiciário, que não é perfeito, continua recebendo ações, notícias-crime, mandados de segurança, todos os instrumentos previstos na Constituição para quem deseja reclamar de qualquer coisa, desde o barulho das crianças do apartamento vizinho até supostas irregularidades nas últimas eleições. Quando acionados, os juízes das várias instâncias se manifestam. Para os reclamantes, cabem numerosos recursos, só é preciso provarem que têm razão. Fora isso, resta a velha frase: “Decisão judicial não se discute, se cumpre”.
– O presidente que está deixando o cargo, Jair Bolsonaro (PL), teve quatro anos para fazer o seu melhor. Fez coisas boas, fez bobagens, falou o que quis, disputou a reeleição colocando toda a máquina pública –e os cofres também– a seu serviço, mas, no final da contagem, perdeu por cerca de 2 milhões de votos. O que fez o presidente? Magoou. Fica olhando com cara de desequilibrado, como se precisasse não de um psicólogo, mas de um psiquiatra. Olha para as pessoas como se estivesse à beira de um ataque de nervos. Isso não é papel de presidente no exercício do cargo.
– De outro lado, ficam as vivandeiras em frente aos quartéis protagonizando espetáculos, como classificaria um político joseense do passado, “ridículos, grotescos, estapafúrdios e caricatos”. Como disse no início desta crônica, é gente adulta, quase sempre instruída, que tem família e simplesmente saiu do mundo real e mergulhou em um universo paralelo. Mas aí entra nesta nossa história uma instituição que até agora tem merecido aplausos e reconhecimentos: as Forças Armadas. Estão na delas, cumprindo suas funções constitucionais, apesar de muitos de seus integrantes, como cidadãos, terem preferido o candidato derrotado, o que é normal em um regime democrático. Não sabe o que são as vivandeiras? Procure no Google uma frase famosa do ex-presidente Castelo Branco.
Por que tudo isso?
Se a gente imaginar que pessoas não ficam inteligentes e não se tornam ignorantes de uma hora para outra, resta dizer que a sociedade de hoje é praticamente a mesma de 10, 30 ou 50 anos atrás. A evolução não dá saltos. Então, o que mudou para chegarmos a ver gente adulta e idosa “marchando” em acampamentos e entoando paródias de musiquinhas infantis com letras adaptadas para o seu convite ao golpe?
Dá para identificar pelo menos três fatores que estão servindo como combustível para manter esse clima de golpe-a-qualquer-momento no ar. E ouso opinar sobre o que fazer para mudar essa situação.
1 – As instituições
As instituições que formam o Estado brasileiro precisam repensar o seu papel. O povo –de quem todo o poder emana e em seu nome deve ser exercido, lembra?– deve ser ouvido, respeitado e atendido nas suas crescentes reivindicações. Ninguém aguenta mais ver gente matando às 9h da manhã, indo até uma delegacia confessar o crime e voltando para almoçar em casa. Não dá mais para ver político corrupto sem punição –que deve vir por um processo legal, com direito a ampla defesa. Não dá mais para viver em um país tão desigual, onde a grande maioria está condenada a viver estacionada na pobreza e uma minoria destinada a manter seus privilégios.
O que fazer – A Constituição atual, que entrou em vigor em 1988, tem grandes qualidades, mas seus defeitos aparecem a cada dia com maior intensidade. Precisamos da instalação de uma nova Assembleia Nacional Constituinte, de preferência exclusiva e composta, além da classe política, por representantes de vários segmentos da sociedade e principalmente por gente de notório saber jurídico. Uma nova Constituição pode manter o que está em bom estado na atual e modernizar as regras para os dias atuais e futuros, reformando nossas instituições e deixando na sociedade a sensação de que elas a representam com eficiência.
2 – A sociedade
Até algum tempo atrás, era comum a gente brincar com quem fazia coisas que não sabia fazer e “se achava”. Por exemplo, se a pessoa cantava muito mal, alguém disparava: “Você gosta de cantar?”, e vinha a resposta: “Adoro!” A tréplica era cruel: “Então por que você não aprende?” Risos gerais.
É exatamente disso que se trata. Parte da sociedade brasileira passou a desejar participar mais ativamente da política do país. Também passou a se interessar mais pelo funcionamento da Justiça brasileira. Mas fica valendo para uma boa parte desse novo contingente a pergunta: “Você gosta de política? Então por que não aprende a fazer política?”
O que fazer – Não basta a Wikipédia, não basta seguir o seu/sua deputado/deputada de preferência, é preciso estudar. É preciso pesquisar nos bons endereços da internet, ler bons livros, seguir bons veículos de comunicação, conversar com gente preparada e, principalmente, pensar. A palavrinha mágica é esta: pensar. Vamos recordar a frase do craque Romário sobre alguns boleiros que o irritavam: “O cara nem entrou no ônibus ainda e já quer sentar na janela”. É preciso humildade para participar desse novo jogo chamado política.
3 – A internet
Você acertou, a internet, que traz em seu bojo as redes sociais com seus grupos de WhatsApp e Telegram, com as provocações no Facebook, Instagram, Twitter, YouTube, mas principalmente com a descida aos infernos dessa ferramenta, a chamada “deep web”, onde literalmente tudo pode acontecer.
Nunca é demais lembrar a frase do intelectual italiano Umberto Eco: “As mídias sociais deram o direito à fala a legiões de imbecis que, anteriormente, falavam só no bar, depois de uma taça de vinho, sem causar dano à coletividade. Diziam imediatamente a eles para calar a boca, enquanto agora eles têm o mesmo direito à fala que um ganhador do Prêmio Nobel”.
O que fazer – A internet é uma das conquistas mais importantes da Humanidade nos tempos recentes, mas precisa deixar de ser o playground dos irresponsáveis, um espaço onde parece que tudo é possível e nada é fiscalizado. É preciso regulamentar o seu uso e responsabilizar quem faz mau uso dela. Enfim, tolerância zero, com advertências, multas, processos judiciais e, se necessário, cadeia.
Finalizando
Então é isso, Dr. Freud. Mostrei nossos problemas e apontei caminhos –difíceis, mas não impossíveis– para sairmos desse atoleiro em que nos encontramos. Existem outros diagnósticos e outras soluções? Sem dúvida, mas desde que elaborados com a cabeça no mundo real e não na ilha da fantasia.
É claro que, como na psicanálise, não há exatamente uma cura, mas um processo em que o paciente se defronta com os seus fantasmas e transforma-os em “amiguinhos” com os quais é possível conviver.
Que tal, doutor, aceita os brasileiros no seu divã?
> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 46 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.