Foto / Arquivo pessoal

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

No piso de cimento vermelho, a mesa no centro da cozinha avizinhava-se de um crepitante fogão a lenha onde, sobre a chapa quente, pendiam linguiças e toucinhos de um improvisado varal.

Em cima da mesa, o bule de esmalte verde com florzinhas amarelas encarecia jeito na pega para não entornar o café quente, passado no coador de pano.

Como era dado ao casal anfitrião, nada de café corajoso! Daí o farto acompanhamento com manteiga, requeijão, queijo, bolachas, pães, bolos e leite com nata de boa consistência. Tudo fresquinho!

De onde estava sentado, numa das cabeceiras da mesa de madeira, meu irmão Geraldo Bueno, dono da casa, podia ver pela janela ágeis andorinhas em rasantes sobrevoos sobre o lago, relando o peito na água turva.

Da outra extremidade eu enxergava boa parte da bem-cuidada entrada do sítio, ornamentada à esquerda por vinte e tantas imponentes palmeiras de cujas folhas o vento não se apiedava.

Ao cabo da espécie enfileirada, num elevado à direita antecedido por um gramado bem aparado e a guarda do indócil cachorro Brejeiro, a casa onde estávamos. Uma confortável duas águas de paredes amarelas, portas e janelas azuis e pequeno alpendre. Típica construção de roça. Uma graça. Na cozinha sem luxo, um rústico guarda-louças, um filtro de barro, um paneleiro e um fogão a gás.

Além de meu irmão, rodeavam a mesa sua mulher, Eugênia, as quatro filhas do casal, Sara, Raquel, Sofia e Júlia, eu e a Maria, minha mulher. A conversa rolava solta, frívola, desimportante, hilária.

No entremeio de um gole de café e um talho no bolo de fubá, uma história ou episódio aleatório tirado das páginas da vida, tendo como figurante um conhecido ou alguém da família, passando pela catança de flores de Zé Timbó, o descanso de João Severino, os botões de ouro e até o santo mijando. Ríamos às escâncaras.

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Quando se pensou finalizado o repertório de galhofas, e que a conversa poderia enveredar para um assunto mais denso, meu irmão colocou um largo sorriso na boca, e perguntou para minha mulher, antevendo a resposta.

–– Maria, e a dona Benedita, como vai?

E aqui cabe um parêntese para lhe apresentar a nova personagem.

Tia solteirona de minha mulher, Benedita foi morar com a gente depois da morte de suas duas irmãs, Zeca e Quita, esta última, minha sogra.

Apesar da idade avançada, dona Benedita gozava de boa saúde, mas era acamada por causa de uma queda que lhe quebrou o fêmur. Nem por isso, deixava de fazer o que mais gostava.

Ficava bom tempo no portão para ver o tempo passar ou, eventualmente, conversar com alguém. Assistia à missa todos os dias na TV Aparecida. Aos domingos, participava da celebração na igreja próxima de casa. Ia de cadeira de rodas, que eu ou minha mulher pilotava.

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Dito isso, voltemos ao café da tarde no sítio Providência.

Quando soube que dona Benedita estava prestes a completar 99 anos, com saúde de ferro e sem tomar um único comprimido que fosse para regular a pressão ou afinar o sangue, meu irmão saiu-se com essa.

–– Olha, Maria, não sei como é porque nunca estive lá. Mas acho que diariamente São Pedro abre o livro de chamada e pede aos anjos que levem para o andar de cima todos que na Terra tenham o nome na página. No caso de sua tia, cismo que o velhinho pulou a página, o que quer dizer que dona Benedita está no lucro, pois sabe-se lá quando São Pedro vai revisar o livro –gracejou.

Dona Benedita atendeu incontinenti ao chamado de São Pedro em 2017. Com 107 anos.

 

> Carlos José Bueno é jornalista profissional (MTb nº 12.537). Aposentado e no ócio, brinca. Com os netos e as palavras.

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