Hoje, sábado, 3 de julho, agora há pouco, por volta de 17h45.
Vou até o supermercado Sonda, no Jardim Paulista. Ao sair do estacionamento e seguir em direção à loja, antes de atravessar a rua vejo uma cena preocupante. Uma moça, com aparência de pertencente a um grupo de ciganos, saia colorida, comprida, com tom predominante de lilás (ou vermelho desbotado?), segura uma criança com cerca de 1 ano e meio de idade. O rosto da criança tem algumas manchas avermelhadas e um ferimento extenso em torno do nariz, parecido com arranhão ou alergia provocada pelo frio.
Penso rapidamente. Vou desobedecer à Prefeitura, que nos manda não dar esmolas, e comprar um pacote de bolachas e um litro de leite para a criança.
A moça tem aparência de uns 24 anos, no máximo, cabelos compridos claros (ou seriam descorados depois de um tempo sem pintar?). E antes que eu me afaste, ela me aborda pedindo um pacote de fraldas para a menina.
Fico assustado e digo que isso não vai ser possível. Mesmo assim, pergunto que tamanho de fralda ela usa.
— Tamanho M –, diz a moça, com um fortíssimo sotaque mineiro.
Sigo em frente e faço minha compra. Compro também a bolacha, o leite, um pacote com 30 fraldas Pampers e um sabonete para bebê da marca Johnson’s. Ao entregar os produtos, pergunto para a jovem mãe o que está acontecendo, onde ela e a filha estão dormindo nessas noites frias. Ela responde que está ficando em uma pousada, mas que não tem dinheiro para a hospedagem de hoje.
Digo a ela que não precisa de pousada, basta procurar a ajuda da Prefeitura, que tem local para dormir, tem banho, alimentação, agasalhos… pergunto se ela já recorreu à Prefeitura e ela responde que não.
Oriento a moça a ligar para o telefone 153 e pedir ajuda. Digo que uma equipe do Apoio Social irá até ela. Ela responde que vai falar com a mãe. (Não sabia que havia uma avó da criança na história, quem sabe mais familiares…) De qualquer forma, insisto que ela deve procurar apoio porque a criança não pode sofrer com essas noites frias.
Finalmente, pergunto de onde ela é, imaginando que vá responder, com seu fortíssimo sotaque, o nome de uma cidadezinha mineira.
— Sou de Caçapava –, diz, para meu espanto. Não acredito, mas ela garante que é de Caçapava mesmo.
Encerro o diálogo, não sem antes insistir mais uma vez que ela procure ajuda. E vou me afastando. Mas, como homem é lerdíssimo para essas coisas, só quando estou indo em direção ao carro, percebo uma agravante na história: a moça está em estado adiantado de gravidez, digamos uns quatro ou cinco meses, não sou especialista nisso.
Já no carro, antes de ligar a partida, resolvo tomar uma outra atitude devido a gravidade do caso. Uma moça jovem, que certamente não é de São José, sozinha ali, com um bebê de 1 ano e meio e um outro na barriga.
Aí decido, desta vez, obedecer à Prefeitura e eu mesmo ligo para o 153. Sou atendido rapidamente, coisa de uns dois minutos. A atendente, muito calma, se identifica como pertencente à GCM (Guarda Civil Municipal). Rapidamente, descrevo a situação:
— Estou no estacionamento do supermercado Sonda, aqui no Jardim Paulista, e uma moça assim, assim, está na saída do estacionamento que liga ao supermercado e acontece isso e isso…
Profissional, a GCM pede uma descrição da moça. Faço a descrição da melhor maneira possível e olho novamente para ela, que está a menos de 100 metros de mim, em pé, já com a criança no colo, atravessando a rua e parecendo acompanhar um funcionário do Sonda em direção não sei de onde.
— Senhor, em que rua o senhor está?
— Olha, como eu disse, estou no estacionamento do supermercado Sonda, aqui no Jardim Paulista…
— Que o senhor está no supermercado Sonda, o senhor já disse. Eu perguntei o nome da rua.
De repente, fiquei sem saber o que dizer, pasmo, com cara de idiota, embasbacado. Só pude responder…
— Me desculpe incomodar a senhora. Até logo e bom trabalho aí.
A ducha de água fria do 153, via GCM, ou da GCM, via 153, gelou o meu sangue. Quer dizer que para o 153, que possui equipes de Apoio Social fazendo rondas por toda a cidade (acredito nisso!), não basta comunicar um fato, descrever a situação, informar onde o fato está acontecendo e terminar dizendo que “o problema” está indo embora? Se eu não sei o nome da rua –como de fato não sabia–, cancela-se tudo, deixa de existir o problema.
Depois de desligar a ligação, fiquei ali remoendo a sequência do diálogo kafkiano. Eu “certamente” teria que ir até a placa da rua, anotar nome o nome da rua e o número do imóvel, talvez o cep, quem sabe ver com a moça o número do RG, CPF e, por que não, uma certidão de “não” residência dela.
Um nome de rua é imprescindível. O nome supermercado Sonda, o bairro Jardim Paulista, o local exato da ocorrência, não servem. Ou dá o nome da rua, ou esquece.
Ok, esqueci. E neste momento, uma moça grávida com uma criança de presumíveis 1 ano e meio, está não se sabe onde. E do outro lado do “balcão”, promove-se uma gigantesca Campanha do Agasalho e pede-se à população que ajude a recolher as pessoas que estão nas ruas nesse inverno. Ligando para onde? Para o 153…
> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.
*Texto atualizado às 11h15 do dia 4/7/21 para revisão gramatical e ajustes no estilo e vocabulário.