Eu poderia escrever nesta semana sobre a sucessão de erros, bobagens, espertezas, maldades e infantilidades que estão levando o Brasil a despencar para o fundo de um buraco do qual talvez leve décadas para sair.
Talvez fosse o meu dever, como jornalista, expor tudo isto para mostrar o quanto a nossa sociedade está doente, o quanto nós fazemos parte da doença. Mas resolvi não fazer isso. Prometo voltar a este assunto, mas não hoje. Não nesta semana. Talvez não neste mês.
Em vez de jogar mais lenha na fogueira, vou dar a minha modesta contribuição para amenizar o clima de guerra civil que estamos começando a viver. É mais ou menos como nos meses que antecederam a 2ª Guerra Mundial. Todos sabiam que algo terrível iria acontecer, mas ninguém fez nada para evitar. Deu no que deu.
Vou falar sobre a bagunça que estamos fazendo com as nossas vidas. Isto me veio à mente nestes dois últimos feriados e, logo em seguida, no Carnaval extemporâneo e ridículo que nos empurraram goela abaixo.
Comecemos pelo Carnaval. Confesso que a minha infância já não era a época áurea dos antigos carnavais que tomavam conta do país de sábado até terça-feira, com uma quarta-feira de cinzas para curar a ressaca.
Mas ainda era uma festa autenticamente popular. Lembro-me que, uns 30 ou 40 dias antes do sábado de Carnaval, o povo já aprendia as músicas feitas para a festa daquele ano e as escolas de samba –as cariocas, porque as paulistas ainda não empolgavam– divulgavam os seus sambas-enredo.
Nas ruas, as crianças começavam a brincar com suas bisnagas cheias de água para molhar outras crianças nas ruas e até alguns adultos desavisados. Na minha época, essas bisnagas eram chamadas de “xiringas”, certamente uma derivação de seringa.
As mães, enquanto isso, ficavam arquitetando as fantasias com que iriam vestir as crianças para brincar nas matinês dos clubes, ou até mesmo na própria rua de casa. Confete e serpentina era artigo de luxo, para usar com parcimônia nos salões. Eram fantasias bem elaboradas, costuradas nas máquinas Singer ou Vigorelli que eram um item indispensável nos lares daquela época.
Aí vinham os quatro dias de Carnaval, nem mais nem menos: sábado, domingo, segunda e terça. Brincava-se até não poder mais, gastavam-se todas as energias, rasgavam-se as fantasias porque elas tinham um prazo de validade muito bem definido.
Ninguém, ou quase ninguém, ficava grudado nas TVs preto e branco da época para assistir aos desfiles. Era muito melhor brincar na rua mesmo ou no clubezinho de perto de casa. Enfim, era uma grande festa que envolvia crianças e adultos durante, repito, exatos quatro dias.
A quarta-feira de Cinzas era o dia reservado aos adultos curarem a ressaca, começarem a pensar na volta ao trabalho e à vida normal. As crianças, que já haviam “detonado” suas fantasias e “xiringas”, já começavam a pensar na próxima brincadeira do calendário infantil, que não estava escrito em lugar algum, mas que todas seguiam.
O tempo passou, as músicas de Carnaval já não existem mais, os sambas das escolas ficam meio restritos aos torcedores das “comunidades”, os grandes bailes e as alegres matinês dos clubes caíram em desuso. E o que sobrou?
Sobrou uma festa produzida para a televisão. Sobrou uma espécie de Olimpíada do Samba que analisa todos os detalhes do “show” e confere notas que chegam a detalhar as mínimas casas decimais. Até que um cidadão com voz tonitruante vai revelando as notas…. “9.7, 9.9…” e por aí afora.
Aí vem o show dos presidentes e diretores das escolas, com seus desmaios, suas toalhas para enxugar o suor abundante, suas expressões de êxtase ou de tragédia. Isto sem falar nos “foliões” que estão quietinhos até que uma câmera de TV seja ligada, e aí se transformam em animadíssimos carnavalescos.
Já deu para você perceber que eu dividi aqui o Carnaval em duas festas absolutamente diferentes: a festa popular que acontecia nas ruas e nos clubes, e a festa que é feita para ser um espetáculo midiático.
Perdeu a graça.
O mesmo vale para os feriados. É evidente que cada feriado tinha o seu significado específico. O Corpus Christi tinha ruas enfeitadas –pelo povo das paróquias católicas, não por uma empresa contratada por licitação– e depois tinha procissão sobre essas mesmas ruas; a sexta-feira santa era o dia em que adultos e crianças iam ao cinema assistir aos velhos e repetidos filmes sobre a paixão de Cristo; aí vinha o sábado de Aleluia, com a malhação do Judas nas ruas e grandes bailes nos clubes; e finalmente o domingo de Páscoa, com seus ovinhos modestos, mas cheios de significado.
Ovo de Páscoa, na minha memória de infância, não tinha brinquedo dentro, não tinha “grife”, não tinha a opção “de colher”, nada disso. Mas deviam ser baratos, porque eu, meus irmãos, primos, colegas de rua, ganhávamos ovinhos pequenos de todos os parentes, eram mais de uma dezena todos os anos. Não tinham a marca do Sonic ou da Lol, mas vinham cheios de amor dos pais, tios e avós.
Vou ficar por aqui, mas convido você a pensar no significado que tinham os demais feriados. O Dia das Mães, com as lembrancinhas feitas na escola pelos próprios filhos; as festas juninas, cheias de tradições e gostosuras; o 7 de setembro, com os desfiles escolares; o Finados, com as visitas aos antepassados nos cemitérios; o Natal e o Ano-Novo, com o encontro de famílias inteiras, 40, 70, 100 pessoas, todas confraternizando, brincando e às vezes até brigando entre si, mas nada que não se resolvesse horas depois.
Aparentemente, as famílias ficaram mais prósperas ao longo dos anos, possuem mais bens, vestem-se melhor, quase todas têm seus automóveis, muitas têm parentes vivendo no Exterior, as viagens a lazer por todo o país são constantes.
Mas se você pensar bem, esta prosperidade aparente nos deixou mais pobres, mais tristes, mais alienados, mais distantes dos familiares e dos amigos. Não damos mais valor ao significado das datas que alimentavam nossos espíritos ao longo do ano e nos faziam ter a certeza de que estávamos bem vivos.
Em abril, tivemos uma quinzena com dois feriados prolongados: a sexta-feira da paixão seguida da Páscoa e o feriado de Tiradentes. Como se não bastasse, veio o Carnaval fora de hora, porque a covid não deixou que ele acontecesse quando deveria.
E o que ficou em nossa memória afetiva destas três datas? A lembrança de um churrasco, de uns banhos de praia, de um congestionamento, da dívida no cartão em uma viagem a Fortaleza, do ovo de colher que quase nos intoxicou de tão doce que era.
Que vida besta…
> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 46 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.