Já havia passado um bom carnaval em São José dos Campos, em fevereiro de 1964, no Tênis Clube e na Associação. Último ano do gostoso lança-perfume, não sei por que proibido. Se foi por ser usado como droga, não tem muito sentido, as bebidas alcoólicas também eram entorpecentes, mas de consumo livre por adultos.
Contudo, polêmica à parte, em 1965 a turminha a que nos ligamos quando aqui chegamos de São Paulo, foi a do incipiente Clube dos Cinquenta. Com contornos de elite, depois se transformou no Clube do Castor, do Lions Clube. Era capitaneado pelo jovem Ênio de Almeida Puccini, pianista clássico, anos após colunista social.
Seus irmãos, o pianista Élbio e Evandro Puccini, baterista, depois economista, compunham o quadro, além de integrantes das famílias Becker, Bonadio, Cará, Nasi, Pulga, Moura, Simão, Lehmer, Mudat, Viana, Pinto Neves, Moreira da Silva, Freitas, Mantovani, Davoli, Molina, Nieri, Mesquita, Bondesan, Alvarenga, Bernardes, Castro, Cerchiaro, Strauss, Vicentini Toledo, Martins, entre outras. Filhos de médicos, advogados, comerciantes e da administração superior das indústrias, como dizia um amigo marxista, a nata da burguesia.
Naquele início de ano, o Ênio propôs que fôssemos para Cruzeiro, sua cidade natal, cujo carnaval era sabidamente mais animado que o daqui, pelo menos na época. Formamos um bloco, com camisas iguais, de seda ou cetim, num belo padronado de azul, calças brancas, e lá fomos para a folia. Iríamos ficar na casa do Ubirajara Silveira, o Bira, cruzeirense também, estudante em São José, não me lembro bem, passado mais de meio século.
Mas isto não me preocupava em absoluto, imagine, nos meus dezessete anos. Tudo era farra e nem de longe pensava em futuro algum, o que mudaria radicalmente um ano depois.
Realmente o carnaval de Cruzeiro era animadíssimo, dois clubes, entrávamos em um, saíamos para ir ao outro, tudo com ingresso facilitado, como visitantes. Tudo seria ótimo desde que não mexêssemos com a principal figura masculina do local, jovem alfa, o temível moço que comandava, por bem ou por mal, a juventude da cidade. Só me lembro do apelido: Frapê, não sei se era porque batia bem. Alto, corpulento, nossa sorte era que contávamos com sua amizade à família Puccini.
Os bailes corriam muito animados, muitas gatinhas bonitas, além de confete e serpentina. Fantasias e blocos, como o nosso, bem como −não nego− algum lança-perfume meio escondido, porque já haviam resolvido cumprir a antiga vedação promovida pelo autoritário e moralista Jânio Quadros. Porém, seu uso era ainda aceito, contando com a leniência contumaz brasileira.
No último dia de carnaval, terça-feira, estávamos à beira do salão, apreciando o pessoal pular freneticamente, numa pausa para um cigarro, então de uso generalizado. Meu irmão, que ordinariamente não fumava, estava com um fatídico cigarro na mão, entre os dedos, na altura do peito.
Não é que parou de pular o terrível Frapê e vem para o nosso lado, de costas, ficando bem em frente ao mano. Em dado momento, o bruto anda mais para trás e acaba encostando o braço na ponta em brasa do cigarro. Ele se virou lentamente e encarou meu irmão, ainda parado com o bendito cigarrinho na mão, impassível, como é sua característica.
Todos ficamos gelados, o mundo parece que parou, mesmo naquela barulheira, não sei nem se as pessoas pararam. Para nós a coisa ia ficar muito feia, como se não bastasse, éramos de fora e poucos. O grandão ia acabar com o rapaz magrinho.
Segundos se passaram, todos de olho no temido Frapê, que se limitou a tirar lentamente o cigarro das mãos do mano, joga-lo ao chão e pisa-lo para apagar, girando o pé. Isso, sempre encarando o congelado fumante.
Acontece que o Frapê subitamente virou as costas e foi para o meio da multidão. Isso foi a deixa para que, mais que depressa, fôssemos embora para dormir. Tudo de repente perdeu a graça, adrenalina lá em cima.
Cedo, bem cedo, após ouvir rumores de que o indigitado Frapê viria tirar satisfações, rumamos depressa para a querida São José dos Campos, até porque um galo em terreiro vizinho vira pintinho.
Não fizemos mais excursões carnavalescas.
> José Roberto Fourniol Rebello é formado em direito. Atuou como juiz em comarcas cíveis e criminais em várias comarcas do estado de São Paulo. Nascido em São Paulo, vive em São José dos Campos desde 1964, atualmente no Jardim Esplanada. Participou do movimento cultural nascido no município na década de 60.