O Brasil é mesmo um país que está longe de ser considerado desenvolvido e… civilizado. Mais um exemplo do nosso obscurantismo tem sido dado nestes dias na paradisíaca cidade do Guarujá, na Baixada Santista, onde parece estar sendo gravado um longa-metragem de faroeste.
Tudo porque um soldado da Polícia Militar, integrante da notória Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), foi morto durante uma operação por lá. O que seria feito em um país civilizado? Um trabalho de inteligência policial, uma rápida e eficiente investigação, até se chegar ao autor –ou autores– do crime. Em seguida, encaminhar os suspeitos –ainda na condição de suspeitos– à Justiça para processar e julgar os detidos.
Ou não. É preciso que o inquérito policial seja bem elaborado e traga provas consistentes da autoria do crime. Caso não haja essas provas, qualquer advogado derruba a acusação e devolve os suspeitos para a liberdade.
Bem, isso tudo, como eu disse, é o que deve acontecer em países civilizados. Deveria acontecer também no Brasil. Com todo tipo de crime, envolvendo todo tipo de vítima e todo tipo de suspeito. É claro que também se deveria esperar, como nos países civilizados, que a pena fosse cumprida integralmente, sem exagero em benefícios como as progressões de penas.
Mas voltemos ao crime cometido contra o PM da Rota no Guarujá. Já disse acima, e repito, que é preciso capturar e processar rapidamente os suspeitos. Trata-se de um assassinato que deve ser lamentado, ainda mais por ter como vítima um agente a serviço da sociedade. Colocar o autor –ou autores– na cadeia é defender a sociedade como um todo e suas regras de convivência.
Mas paremos por aí. O que se tem visto no Guarujá, na Operação Escudo, é uma caçada maluca por culpados onde, em vez de um juiz aplicando as penas, o julgamento e a condenação são feitos por soldados armados que, em nome do Estado, se vingam de eventuais culpados e inocentes aplicando a pena de morte.
Até segunda-feira (31), a Polícia Civil confirmou 10 mortes em função da operação da PM no Guarujá após o assassinato do soldado da Rota. Porém, as Ouvidorias das Polícias estão investigando outras nove mortes, o que, se confirmado, elevaria o número do confronto para 20 mortos. Algo como uma goleada de 19 a 1 a favor da PM.
Quando escrevo esta crônica/reportagem/artigo/sei-la-o-que, a imprensa registra o pavor que se instalou na população dos bairros mais pobres daquela cidade. Gente que tem medo de voltar para casa após o dia de trabalho. É óbvio que os marginais locais –e é claro que eles existem– também devem estar apavorados.
Enquanto isso, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) parece hesitar em restabelecer a ordem para evitar a matança que vem ocorrendo, seja de vítimas inocentes, seja de criminosos. E por que ele hesita? Porque tem um carnê a pagar para eleitores mais radicais do ex-presidente Jair Bolsonaro que o levaram pelas urnas ao comando do maior estado do país. De tempos em tempos, Tarcísio paga uma prestação acenando com afagos a esses radicais, incluído o próprio Bolsonaro.
Sem um comando firme, fica uma sensação de impunidade no ar. Pior que isso: fica a sensação de que está tudo certo lá no Guarujá e que a operação vai continuar. A Secretaria de Segurança Pública (SSP) anunciou que a polícia irá prosseguir com a Operação Escudo por pelo menos 30 dias.
A SSP também disse que todas as mortes em decorrência das ações policiais estão sendo “rigorosamente investigadas”. Segundo a pasta, as apurações estão sendo conduzidas pela Deic (Divisão Especializada de Investigações Criminais) de Santos e pela própria Polícia Militar. Ou seja, a PM investigando a própria PM…
Uma comissão formada pela Ouvidoria das Polícias de São Paulo, Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP e Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana) acompanha o caso. Em nota divulgada também na segunda-feira (31), a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns –Comissão Arns– divulgou nota para manifestar a sua “profunda preocupação” com a Operação Escudo. “A morte do policial não pode ser tolerada, exigindo ação rigorosa por parte das autoridades, porém dentro dos estritos limites do Estado de Direito”, declarou.
E a nota foi além: “Causou perplexidade a manifestação do governador do Estado, Tarcísio de Freitas, bem como do secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, em defesa da operação, mesmo antes do resultado das devidas apurações. De acordo com o governador, ‘não houve excesso, houve atuação profissional’. Conclusão a que ele apenas poderia chegar após a realização de investigações rigorosas e independentes. Esse tipo de endosso a priori da conduta policial apenas contribui para a flexibilização dos tão necessários controles sobre a atividade policial”.
Este é o cenário do duelo totalmente desequilibrado que se trava no Guarujá entre policiais militares e bandidos, tendo a população mais carente do município no meio deles. E isso está acontecendo no estado mais desenvolvido, onde, é preciso reconhecer e elogiar, os índices de criminalidade são os mais baixos do país. Mais baixos pelos investimentos em segurança pública e pela eficiência das polícias. Nada a ver com violência, vingança e sentenças de morte.
Governador, retorne ao mundo civilizado!
Eu não disse?
Na semana passada, critiquei aqui o “cochilo” dos governos no Brasil com a proteção da população diante de golpes e armadilhas preparados contra ela. Um dos exemplos citados –clique [aqui] para ler ou reler o texto– foi a regulamentação das empresas de apostas esportivas no país, em troca de altos impostos a serem pagos –ou sonegados? – por elas.
Pois o meu temor se tornou realidade. Um estudo divulgado pela plataforma de códigos CupomValido.com.br, com dados da SimilarWeb, mostra que o Brasil lidera folgadamente o ranking mundial dessas apostas com 3,19 bilhões de acessos. O número é quase duas vezes maior que o do segundo colocado, o Reino Unido, com 1,61 bilhão. Os Estados Unidos, onde se aposta de tudo, ocupam um mero quinto lugar, com 781 milhões de acessos.
Pobre povo brasileiro.
> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 46 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 22 anos.