Gosto muito de cinema. Não dos megassucessos de bilheteria, mas de filmes mais interessantes, principalmente os dramas de não-ficção e, destes, principalmente os não norte-americanos. Aí incluo os cinemas brasileiro, argentino, inglês, italiano, francês e os de alguns países do leste europeu.
Quando defini o tema desta crônica, imediatamente veio à minha memória uma cena do filme “O Assalto ao Trem Pagador”, de 1962, que fez parte do chamado Cinema Novo brasileiro dos anos 50 e 60, embora alguns não considerem a fita como representativa do movimento. Assisti muitas vezes a este filme, uma espécie de realismo com tintas carregadas nos dramas humanos, baseado em um assalto real ocorrido em 1960.
A cena a que eu quero me referir é a invasão da polícia ao barraco de Tião Medonho, líder da quadrilha que praticou o assalto a um trem pagador na estrada de ferro Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Enquanto guardas civis, investigadores e o próprio delegado começam a fazer o seu trabalho –com a falta de escrúpulos típica da época–, um grupo de repórteres policiais começa a vasculhar o barraco em busca de fotografias de família, documentos e, quem sabe, uma pista do dinheiro roubado.
Não é preciso dizer que o barraco do Tião foi posto abaixo. Roupas voavam pelo ar, panelas jogadas para o alto faziam um barulho infernal e, terminada a anarquia, polícia e imprensa tinham alguns “troféus” para exibir. No dia seguinte, a vida de Tião, da mulher e de uma penca de filhos pequenos estava exposta para o Brasil inteiro estampando as capas dos jornais sensacionalistas.
E por que esta cena, extraída de um filme feito há 62 anos, mexeu comigo ao escrever este texto? Porque tenho identificado a mesma invasão de privacidade da imprensa quando ela busca informações a respeito de quem virou notícia da noite para o dia. É o que aconteceu, por exemplo, com as vítimas do acidente com a aeronave da empresa Voepass –que já se chamou Passaredo– no voo entre Cascavel (PR) e São Paulo, caindo em Vinhedo (SP) e matando 62 pessoas.
Também é o que tem acontecido com vítimas de homicídios, acidentes de trânsito e de outras ocorrências em que as informações são escassas. Afinal, se as vítimas ou os suspeitos morreram, nunca mais prestarão uma declaração. Da mesma forma, o acesso às famílias, aos presos e aos feridos é quase sempre difícil, quando não impossível.
E aí, como a imprensa se arranja com a “seca” de informações? Simplesmente invade as redes sociais dos envolvidos e, a partir disso, faz um vale-tudo de fotos, vídeos, declarações de amor e tudo o mais que possa ajudar a traçar um perfil –quase sempre falso– de quem virou notícia sem querer. Às vezes, essas novelas da vida real invadem dias e dias do noticiário, como se os mortos não tivessem nenhum direito à privacidade.
Sei que alguns vão dizer: “Ué, quem mandou escrever no Facebook, botar vídeo no Insta, rebolar no TikTok, quebrar o pau no X? Problema deles!” Se você pensa assim, respeito, mas não concordo e digo o porquê. Creio que ninguém usa as redes sociais como um conjunto de “depoimentos” e imagens para toda a vida –e mesmo para depois da morte.
Ora, redes sociais são usadas com muitas finalidades, mas na maioria das vezes servem como diversão, interação, troca de fotos, comemoração de momentos bons, lamentação por momentos ruins, enfim, nada que pareça uma biografia planejada para servir de obituário de quem as usa.
Fico arrepiado quando vejo notícias de gente que morreu trazendo declarações feitas em vida, em um Facebook ou outra rede qualquer. Acho que ninguém tem o direito a esse tipo de invasão, a não ser a polícia para suas investigações.
A imprensa –já tão apequenada nos dias atuais– deveria respeitar o direito dos mortos de não serem interpretados por frases fora de contexto e outras manifestações que não poderão ser checadas nem mesmo em um bom centro espírita.
Há exceções? Penso que buscar uma foto do personagem da notícia, sem sensacionalismo, sem apelação, apenas para identificar quem morreu, não fere nenhum código de ética. O mesmo vale para informações que tenham a ver diretamente com a ocorrência. Mas imagine, por exemplo, uma moça que perdeu a vida em um acidente de moto ser retratada em uma foto na praia vestindo um minúsculo biquini. Pegou a ideia? É isso. O jornalista deve consultar os seus princípios éticos sempre que for publicar um conteúdo, seja de texto, seja de imagem.
Já que dei o meu recado por aqui, fica uma sugestão ao governo federal, ao Congresso Nacional ou ao Poder Judiciário. Que tal alguém facilitar o bloqueio e a posterior exclusão de todo perfil, página e qualquer outro arquivo de conteúdo de pessoas físicas nas redes sociais após a morte dessas pessoas?
Aposto que muitos que estão lendo este texto agora já passaram pelo vexame de desejar parabéns pelo aniversário de algum “amigo” das redes sociais que já não pertence ao mundo dos vivos. Por isso, pergunto novamente: Por que é tão difícil retirar informações pessoais das redes sociais quando os seus donos já morreram?
Enquanto isso não acontece, fico na esperança de que a nossa imprensa recorra ao velho código de ética da profissão antes de invadir a privacidade de vivos e mortos que não poderão se defender ou se explicar.
> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 48 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 23 anos.