Tenho notado uma tendência nesses meus textos, aqui no SuperBairro, de voltar ao passado para tentar entender o presente e projetar o futuro.
Penso muito na questão da pobreza, a cada dia mais isolada nos seus “guetos”, distante das classes mais favorecidas. Tenho refletido há anos sobre isso e o que concluí, até hoje, é que esta exclusão, este “muro de Berlim”, é o pior dos caminhos para que nós tenhamos uma convivência saudável, plena e, acima de tudo, justa.
São recorrentes nas minhas lembranças os exemplos de boa convivência entre as mais diversas classes sociais. Claro que isto não fazia da chamada “luta de classes” uma questão resolvida, mas com certeza possibilitava uma certa harmonia entre pessoas, famílias, instituições, gerando um clima de “paz social” que nenhuma truculência policial ou política poderia obter.
Para concluir essa introdução: nunca me senti um intelectual, apesar de viver das palavras. Sempre soube separar os formuladores, os eruditos, os especialistas, da função que eu exerço, que é, na minha concepção, a de informar, registrar, alertar e, no máximo, sugerir um mergulho mais fundo nas ideias de gente mais competente, aí sim, os chamados intelectuais.
É evidente que sempre houve desigualdade social no Brasil, brutal, monstruosa, assassina. Mas eu arriscaria dizer que a cada dia, em vez de diminuir, essa desigualdade parece se acentuar. E aí entram dois exemplos que faço questão de expor a você que ainda está lendo este texto.
O primeiro.
Vivi entre 1967 e 1975 em São Bernardo do Campo. Filho de operário metalúrgico. Porém, pouquíssimas vezes me senti discriminado socialmente. Estudava em escola pública no primário, fiz exame de admissão ao ginásio e, com nota acima de 8 (se não me falha a memória), ganhei o direito de cursar o ginasial no Instituto Estadual de Educação João Ramalho, estabelecimento de referência como foi, descobri anos depois, o João Cursino, aqui de São José.
O que posso descrever desta época é que dividi carteiras escolares e brincadeiras de recreio com filhos e filhas das famílias mais destacadas de São Bernardo, a maioria de origem italiana. Todos, indistintamente, pobres, remediados ou ricos, eram submetidos às mesmas regras gerais nesses espaços.
A própria cidade tinha uma característica completamente diferente das de hoje. Lembro uma colega de escola que pertencia a uma das famílias mais ricas da cidade, os Corazza. Ela morava em uma “pequena” mansão a poucos metros da igreja matriz da cidade. E o que chamava a minha atenção é que a belíssima casa não tinha muros altos e, melhor, eles nem fechavam os portões.
A uns 700 metros –que chute!– da casa desse ramo dos Corazza, havia uma outra mansão, a dos Romano. O menino, nosso amigo, era filho do dono da empresa de ônibus que ligava São Bernardo a São Paulo, imagine o poder do cara. E a mansão, em pleno centro da cidade, não tinha portões fechados, todos podiam ter acesso, até quem, como vi muitas vezes, ia pedir um prato de comida entrando pela lateral e indo direto à porta da cozinha.
Vou pular para o segundo exemplo.
Caçapava, 1975, 76… cheguei a uma cidade com cerca de 30 mil habitantes, entre São José dos Campos e Taubaté. E nunca vou esquecer o que vivi naqueles primeiros anos. Já nos finais de tarde de sexta-feira, a praça da Bandeira, o coração da pequena cidade, começava a receber pessoas de todos os lados, de todas as idades, todos circulando, se divertindo, interagindo, paquerando, namorando, noivando, ou só passeando.
Aquela “romaria” de gente, que começava na noite de sexta-feira, enchia a praça quase o tempo todo até a noite de domingo, quando as pessoas voltavam para casa e começavam a pensar em uma nova semana, que iria terminar na próxima noite de sexta-feira para tudo recomeçar.
Lembro uma cena recorrente, nas madrugadas de sábado para domingo. Por volta de quatro a cinco horas da manhã, formava-se uma “procissão” de gente de todas as origens e idades voltando para suas casas, a pé, depois de se divertirem no baile da Associação Atlética Caçapavense e no “sambão” do bar Xodó. Aquilo envolvia toda a cidade.
Conclusão.
Acho que todos nós devemos refletir sobre o que queremos para a nossa rua, o nosso bairro, a nossa cidade, o nosso país, o nosso planeta. E a melhor maneira de refletir é ler gente que vale a pena ser lida, gente que estuda muito, se dedica muito, para trazer até nós ideias novas, propostas novas, novos desafios.
Sobre a organização social em que vivemos, li esses dias um superartigo do urbanista Roberto Andrés, professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), publicado na melhor revista/site de reportagem do Brasil. O cara é muito bom. Leia aqui, se quiser, o artigo que me chamou a atenção.
Adianto que os apoiadores do atual presidente Jair Bolsonaro não irão gostar muito do artigo. Mas, mesmo para estes, sugiro a leitura. O Roberto Andrés se mostra um intelectual à altura de pensar e propor soluções para a ruptura do tecido social que está destruindo o Brasil.
E se não bastar a análise do intelectual Andrés, fica a proposta do operário das letras Wagner, filho de metalúrgico, aprendiz de fábrica por uns seis meses, que viveu em um tempo em que ricos, remediados e pobres conviviam em uma mesma cidade, quase juntos, sem ter medo uns dos outros.
> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.