Acho que sou meio bipolar. Do mesmo modo que me divirto igual criança com certos assuntos, sou rabugento e descontente com outros. Em minha defesa, posso argumentar que, neste mundo maluco em que vivemos, coexistem, ao mesmo tempo, o bem e o mal, o engraçado e o irritante, o certo e o errado.
De vez em quando dou um resmungo aqui com a nossa Justiça. Isto mesmo, com a Justiça brasileira. Quase sempre procuro minimizar as críticas dizendo a mim mesmo: “Você é leigo, não entende nada disso, a Justiça é um mundo à parte…”.
Mas chegou a hora deste leigo juntar alguns retalhos e fazer uma colcha que irá representar o que ele acha do mundo das leis e dos legisladores que nos dirigem. Já aviso, repetindo, que esta é uma opinião de leigo, assim como talvez uns 98% da nossa população adulta. Mas, como cidadão que é alvo dessa Justiça, tenho todo o direito de opinar. E você também tem. Aliás, o espaço para opiniões quando este texto for compartilhado em páginas e perfis do Facebook, fica aberto tanto para leigos quanto para os chamados operadores do direito.
A gota d’água que me levou a escrever sobre a nossa Justiça caiu nestes dias quando “passeava” pelo portal de notícias UOL. O caso aconteceu na cidade de Tijucas, em Santa Catarina, onde uma criança de 10 anos de idade foi estuprada e engravidou do seu agressor. Depois de ter a retirada do feto negada no hospital da Universidade Federal do estado, com base em legislação que trataria do tempo de gestação, a criança foi parar nas mãos de uma juíza de primeira instância.
E o que fez a meritíssima? Simples: decidiu afastar a criança, agora com 11 anos, de sua casa e da proteção de sua mãe, colocando-a em um abrigo com o [falso] argumento de protegê-la de novas violências sexuais. Além disso, deu como segundo motivo a intenção de manter a criança longe de sua “rede de amor” [aspas para o texto do UOL] para evitar que o aborto fosse feito.
A decisão judicial é vista como um exemplo clássico de mais um caso de violência institucional. E aí vem à minha cabeça a também clássica frase, usada por inocentes e culpados, de que “decisão judicial não se discute, cumpre-se”. Desculpe a dona Justiça, mas a frase não se aplica a barbaridades, autoritarismos e violências como esta cometida contra a criança catarinense e sua família. É até difícil dizer quem cometeu a maior violência contra ela, se o estuprador ou a senhora juíza.
Que Justiça é esta?
Depois de um caso tão claro de decisão que vai contra o cidadão, saída da cabecinha de uma só autoridade, vou me permitir mostrar abaixo um pouco mais da minha incompreensão sobre como funciona –e como deveria funcionar– a Justiça brasileira. Lembrando que o Judiciário é um dos três poderes da República, mas enquanto podemos esculachar, discordar e até protestar publicamente contra o Executivo e o Legislativo, contra os juízes, suas leis e suas decisões, tudo deve estar meio oculto da opinião pública, escondido lá no meio dos chamados “autos do processo”.
O que você pensa sobre essas questões?
– Como um juiz decide? – Pelo que eu saiba, uma decisão na Justiça deve seguir a Constituição Federal, os códigos (civil, penal etc.) e as leis federais, estaduais e municipais. Mas aí a cabeça deste leigo fica embaralhada quando um juiz de primeira instância decide sobre um processo e este é modificado, ainda na primeira instância, por uma liminar concedida por um desembargador; depois, o processo pode ser levado à segunda instância e a decisão ser novamente modificada, até que poderá parar na terceira e máxima instância e ser novamente alterada. Mudaram as leis? Não. Mudaram as circunstâncias do processo? Quase sempre, não. Então o que se conclui é que cada decisão foi tomada com base em mera interpretação das mesmas leis. Ou seja, segundo o leigo aqui entendeu, vale o velho ditado: “cada cabeça, uma sentença”.
– Quem escolhe um juiz? – Na base da carreira, os juízes são nomeados após prestarem concurso, em um processo transparente e baseado na meritocracia. Mas o prosseguimento nessa carreira começa a ser ditado pelo imponderável, até que se chega aos critérios de escolha de um ministro do STF, o nosso Supremo Tribunal Federal, tão combatido nos dias atuais. O problema é que se exige que um candidato a ministro do STF faça uma “campanha eleitoral” para ser indicado pelo presidente da República e sabatinado e aprovado pelo Senado Federal. Esperando-se que esse ministro não deva favores a ninguém. E ainda tem gente que se espanta ao ver decisões de ministros menos seguros e experientes serem favoráveis aos que os “elegeram”. Queriam que fosse diferente? Então, é urgente mudar o caminho que um juiz segue para chegar da primeira instância até o STF.
– A quem a Justiça presta contas? – A ela mesmo. Enquanto nos poderes Executivo e Legislativo os políticos são –ou deveriam ser– “julgados” pelo eleitor, os juízes têm seus atos analisados por colegas da magistratura. Ou seja, a sociedade fica de fora e um mau juiz pode permanecer durante toda a carreira protegido por um sistema corporativista e ainda, depois, gozar de uma polpuda aposentadoria. O que deveria premiar os bons, muitas vezes acoberta os maus.
– Justiça lenta não é justa – A frase é autoexplicativa. Basta citar um exemplo: até hoje se discute a indenização às famílias das vítimas do voo da Chapecoense, ocorrido em 2016, o que é considerado “ontem” no intrincado sistema judiciário. Quando sair a decisão final, as vidas de todos os envolvidos já foram arruinadas.
– Leis fracas e privilégios inaceitáveis – Aí é preciso concordar que a maioria das leis é produzida pelos poderes Executivo e Legislativo e, depois, entregue para aplicação pelo poder Judiciário. Sou de opinião –e creio que a maioria da população brasileira também pense assim– que a nossa legislação ficou fraca e ineficiente para conduzir a sociedade atual. Penso que o Brasil deveria criar urgentemente uma Assembleia Nacional Constituinte, exclusiva, para que tenhamos uma nova Constituição Federal. E mudar, a partir dela, principalmente o Código Penal, que me parece ser atribuição do próprio Judiciário.
Acho melhor parar por aqui. Poderia “resmungar” mais uns 20 parágrafos, mas seriam quase variações sobre o mesmo tema. O que eu gostaria que ficasse claro neste artigo é a necessidade urgente de uma aproximação entre a Judiciário e a sociedade brasileira. Ele não pode ser um poder encastelado e autoprotegido enquanto o Executivo e o Judiciário tomam pau diária e, quase sempre, merecidamente.
É evidente que esta não é uma crítica generalizada a uma maioria de juízes, servidores públicos e outros operadores do direito que trabalham muito, com competência e amor pela carreira, pelo país e pela sociedade. É uma crítica ao que, no meu modo de ver, não está certo e deve ser corrigido.
Que o Judiciário desça das alturas e venha para o mesmo plano dos outros poderes e do povo. Até para que absurdos como o da criança catarinense vítima de estupro e, depois, de violência cometida por uma decisão judicial, não aconteçam mais. Ou que sejam devidamente punidos. Mas aí talvez já seja pedir muito.
> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 46 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.