Parecendo ter pressa, naquela tarde quente e de céu limpo e claro, Isabele fechou com força o ruidoso portão de ferro e disse para a mãe que conversava com a vizinha de frente à sombra de uma sibipiruna:
– Vou ao mercado, mas não demoro. Fique atenta porque vai chover e as roupas no varal estão quase secas.
– Com este céu lindo, por que acha que vai chover?, retrucou a mulher.
– A senhora não está ouvindo o canto das cigarras?, respondeu a filha, apontando para a frondosa árvore de onde saía o barulho estridente.
O diálogo acima é ficção, mas as cigarras são reais e estão por toda parte. Elas já infestam as árvores que permeiam ruas, praças e avenidas. Seu canto é ensurdecedor, mas daí tê-lo como prenúncio de chuva é uma entre muitas lendas que cercam esses insetos, considerados os mais barulhentos do mundo.
Outra assertiva atribuída à crendice popular é a de que as cigarras se esgoelam em dias e até noites primaveris, menos em Finados, quando se calam em respeito aos mortos. Nunca atinei para isso. E você?
A propósito, diz-se também por aí que, na morte, se o defunto levar para o túmulo uma cigarra na boca terá vida feliz e festiva quando acordar em outra dimensão. Não sei de ninguém que tenha ido do aquém para o além com uma cigarra entre os dentes e voltado pra contar como vive sei lá onde –e nem quero saber. Credo!!
Espiritualistas e mestres da milenar técnica do Feng Shui costumam recomendar amuletos para restaurar a harmonia e o bem-estar das pessoas. Pois saiba que o de jade, em formato de cigarra, atrai sorte e felicidade, diz a filosofia chinesa.
“Causos” e menções do nosso folclore deram fama a esse inseto existente no mundo em mais de 1.500 espécies, mas foi com “A Formiga e a Cigarra”, fábula de Esopo recriada por La Fontaine e Monteiro Lobato, que ele se notabilizou.
Sob a verve do francês, diz-se que num certo verão a formiga penou todos os dias para prover-se de alimento para enfrentar o rigoroso inverno, enquanto de cima da árvore a cigarra não fez outra coisa senão cantar alegremente dia e noite sem parar.
Quando o inverno chegou e a comida faltou, a cigarra, com fome, foi pedir o que comer à formiga, que perguntou:
– Por que durante o verão não juntou alimento para enfrentar os dias frios? O que esteve fazendo?
– Vivi o verão alegremente, dançando e cantando, respondeu a cigarra.
– Quer dizer que enquanto eu labutava juntando comida para ter um inverno tranquilo, você cantava? Pois, cante e dance!, disse a formiga, sem se apiedar da cigarra faminta.
Na historieta infantil a formiga representa aquele que, preocupado com o futuro incerto, é previdente; enquanto a cigarra faz o papel de quem vive as delícias do tempo presente, sem se preocupar com a imprevisibilidade dos dias por virem.
Sei quase nada sobre as cigarras. A não ser que o macho atrai a fêmea para acasalamento fazendo serenata; que a fêmea morre após depositar os ovos nas cascas das árvores; que o filhote desce à terra para cavar até atingir as raízes das plantas, de cuja seiva se alimenta; que as cigarras se juntam às centenas em cantoria para ludibriar os predadores; que o som causado por elas juntas equivale-se, em decibéis, até ao de uma banda de rock; e que (acredite!) na semana passada esses bichinhos atazanaram a vida de minha mulher.
Explico! Com precisão de gravar um vídeo para a comunidade religiosa de que participa, duas vezes dona Maria trancou-se no quarto imbuída desse intento. Não conseguiu por conta do fundo musical produzido pela banda de rock em frente de casa.
Premida pelo tempo, o remédio foi levantar-se antes do amanhecer para gravar. E acho que combinado com as cigarras, pois mal o sol beijou o dia começou a cantoria.
> Carlos José Bueno é jornalista profissional (MTb nº 12.537). Aposentado e no ócio, brinca. Com os netos e as palavras.