Os anos eram 1960.
– Meu filho, se vai catar içá tome cuidado pra não pisar em algum estrepe!
Ressoando essa advertência de minha mãe eu saía capturar içás num Monte Castelo rarefeito de casas e forrado de capim barba-de-bode, cabacinhas do campo e guanxumas. A vegetação nada densa tornava improvável o surgimento de cobra, que me punha medo.
Às vezes calçava uma sandália, um conga ou um sapato de borracha chamado “tô na merda” por causa da catinga que dava no pé. Mas, no auge da meninice, catar içás era pura diversão. Por isso eu gostava mesmo de ir descalço, como os demais moleques. Daí o solene aviso de minha mãe para não plantar o pé numa ferpa.
Carregava um embornal onde depositava as saúvas aladas já sem ferrão, pernas e asas, de forma a evitar fuga. Com alguma sorte achava um formigueiro para apanhá-las antes de revoarem. Levava doloridas ferroadas e voltava para casa com os pés inchados, mas a catança valia a pena.
Minha mãe banhava os bichos em água com vinagre. Depois, derretia uma colher de banha na frigideira e punha-os na quentura até ganharem crocância, mexendo bem para não queimarem. Adicionava sal, pimenta do reino, alho e partes iguais de farinha de mandioca e de milho. Por fim, salpicava cebolinha cortada bem fininha. O cheiro característico ouriçava a vizinhança.
– Dona Maria, a senhora tá fritando içá?, gritava a Paulina, do outro lado da cerca, já sabedora da resposta.
– Tô! Venha buscar um pouco, mas traga vasilha!, respondia minha mãe.
Instantes depois a Paulina chegava trazendo outra vizinha, cada qual com sua marmita de alumínio. Levavam generosa porção. O que sobrava da farofa de içá a gente comia de lamber os beiços, pura ou com arroz branco. Uma delícia! Depois, eu ia passar álcool nos pés para aliviar o inchaço causado pelas ferroadas.
A içá é a fêmea, rainha do formigueiro. Vive na escuridão da terra palmos abaixo da superfície, onde se alimenta de fungos vegetais. Reza a lenda que entre o fim da primavera e começo do verão ela é despertada por Tupã, o deus Trovão, e sai num voo nupcial para acasalar com o sabitu. Este morre depois do namoro, enquanto ela aterrissa para se desfazer das asas e formar novo sauveiro.
É nessa época que gente de todas as idades sai à caça das içás no Vale do Paraíba, onde lugar de formiga é no prato, numa boa farofa ou como simples petiscos torrados. Quem mais se diverte são as crianças (como eu antigamente), que só precisam tomar cuidado com o poderoso ferrão da formiga. Rica em proteína, a içá que escapa do prato pode viver até quinze anos.
As saúvas são contadas em milhões num formigueiro adulto, estimando-se que uma colônia consuma uma tonelada de vegetais por ano.
Num formigueiro, cada saúva sabe exatamente o que fazer –e faz com presteza. A cortadeira corta as folhas que viram fungo para alimentar a parentada, a enfermeira toma conta dos ovos e ajuda a rainha a cuidar da prole, a gari cuida de descartar os resíduos, e a soldado defende com a própria vida o ninho e a rainha.
Dia desses, passeando pela histórica Silveiras, minha terra natal, soube que por lá, todos os anos, uma legião vai para os morros na revoada das içás. Nenhuma novidade, pois a içá está entranhada no passado do Vale
Histórico, tendo figurado no cardápio dos indígenas e, depois, dos viajantes que em lombo de burros iam de Minas Gerais para o litoral, pelo Caminho do Ouro, na época do Brasil colônia.
Para popularizar o seu consumo, Silveiras criou o Festival da Içá, realizado no mês de novembro, e virou a Capital da Içá. Isso graças a Ocílio Ferraz, abnegado divulgador dos costumes, tradições, gastronomia e cultura dos habitantes do sopé da Serra da Bocaina. Falecido em 2016, era dele um restaurante na cidade com pratos da culinária caipira e tropeira, entre os quais a farofa de içá.
Em 1903 o escritor taubateano Monteiro Lobato encaminhou missiva ao colega mineiro Godofredo Rangel, também escritor, com o seguinte relato:
“Não és capaz, nunca, de adivinhar o que estou comendo. Estou comendo… tenho vergonha de dizer. Estou comendo um companheiro daquilo que alimentava S. João no deserto: içá torrado! Sabe, Rangel, que o içá torrado é o que no Olimpo grego tinha o nome de ambrosia? Está diante de mim uma latinha de içás torrados que me mandam de Taubaté. Nós taubateanos, somos comedores de içás. Como é bom, Rangel! Prova mais a existência do bom Deus do que todos os argumentos do Porfírio Aguiar. Só um ser onipotente e onisciente poderia criar semelhante petisco!”
Hoje, os apreciadores da iguaria comemoram a frustrada previsão do botânico Auguste de Saint-Hilaire que, duzentos e tantos anos atrás, espantado com a ação predatória das formigas gigantes em terras tupiniquins, aconselhou: “Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil”.
Ainda bem que o Brasil não acabou com a saúva, pois daqui a pouco, quando terminar a primavera e começar a temporada de caça às içás, estará assegurado nosso apetitoso e crocante caviar caipira.
> Carlos José Bueno é jornalista profissional (MTb nº 12.537). Aposentado e no ócio, brinca. Com os netos e as palavras.
> Arquivo atualizado às 13h15 do dia 30/9/22 para a correção de texto truncado, publicado com a falta de vários parágrafos.