O dramaturgo Nelson Rodrigues cunhou a expressão “óbvio ululante” para definir aquelas situações que nem precisariam ser ditas ou debatidas. O sol nasce todos os dias? É óbvio. A chuva é líquida? Óbvio. A bola de futebol é redonda? Óbvio. O que é óbvio ninguém discute porque não é preciso perder tempo discutindo.
Falando em coisas óbvias, me vem à mente o decreto publicado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública e assinado pelo presidente Lula na terça-feira, dia 24. Quem pensa que o conteúdo do decreto é uma grande novidade, se engana. O decreto trata do óbvio. Mas é preciso bater palmas para a iniciativa e dizer que as obviedades contidas nele nunca foram tão necessárias e bem-vindas.
Por exemplo, quando o decreto determina que o uso de arma de fogo pelas polícias deve ser feito como último recurso, isso é óbvio. Que não se deve “metralhar” um veículo que rompe uma barreira policial transformando todos os seus ocupantes em peneira, é o óbvio ululante.
O aumento gritante dos casos de violência policial, ainda mais no estado de São Paulo, o mais desenvolvido do país, tornou necessário que o governo federal, por meio do ministro Ricardo Lewandowski, pusesse o dedo na ferida exposta representada por vítimas inocentes, entre elas muitas crianças, eliminadas por policiais despreparados técnica e psicologicamente para cumprir a função de representantes do Estado no combate à criminalidade.
É óbvio também que ninguém está exigindo que os policiais exponham suas vidas em confrontos desiguais com os bandidos. Não é isso que se pede a eles. Existem protocolos de atuação para evitar que agentes da segurança pública corram mais riscos que o necessário nos confrontos. O objetivo deve ser neutralizar o suspeito e, ao mesmo tempo, proteger vítimas e os próprios policiais.
É óbvio também que em muitos casos o risco aumenta, como nos sequestros, ocorrências com reféns, fugas após os delitos ou tiroteios provocados por gente do crime organizado, principalmente relacionados ao tráfico de drogas. Até para isto existem protocolos destinados a ensinar os policiais a agir da maneira mais segura possível.
O decreto do Ministério da Justiça foi criticado pelos mesmos de sempre. Entre eles, os que acham que “bandido bom é bandido morto”, os que querem colocar a segurança pública como uma questão ideológica entre a direita e a esquerda, os que carregam uma “memória escravocrata” quando os chamados “capitães do mato” faziam o serviço sujo para fazendeiros e coronéis autoritários na caçada aos negros foragidos.
Policial não é “capitão do mato”, não é o sujeito contratado para eliminar o que incomoda a sociedade, não é um emprego que se dá para gente que já carrega a violência dentro de si e ganha, com um emprego nas polícias, o direito de matar e ainda ser condecorado por isso.
A tarefa policial é a de representar a sociedade ordeira e o Estado em conflitos de toda ordem para resolver as ocorrências por meio das leis contidas na Constituição Federal e no Código Penal, entre outros regulamentos. Porém, até que a Justiça transforme os autores das ocorrências em condenados, todo mundo é, no máximo, suspeito. Cabe ao policial entregar o suspeito a um juiz que vai decidir o que fazer com ele. E ponto final.
É preciso destacar aqui o grande fardo que governantes inconsequentes e cidadãos desorientados colocam sobre os ombros dos profissionais da segurança pública, dando a eles carta branca para agir como bem entenderem. Para avaliar o que essa pressão provoca, basta verificar a enorme quantidade de policiais que vão parar nos consultórios de psiquiatras e psicólogos por perderem o controle emocional no cumprimento das suas funções.
Eu poderia citar aqui dezenas de casos escabrosos para colocar ainda mais violência neste artigo. Mas vou ficar com dois, o mais recente e o mais ridículo, que demonstram a mais completa e absurda falta de preparo por parte de gente que recebe armas para agir em nome do Estado.
Na cidade de Duque de Caxias (RJ), no mesmo dia 24 em que Lula assinou o decreto de redução da violência policial, uma operação da Polícia Rodoviária Federal (PRF) terminou com um tiro disparado contra um veículo. Dentro dele, uma família. Uma jovem de 26 anos foi atingida na cabeça e está em estado gravíssimo.
A mais ridícula também vem do Rio de Janeiro e ocorreu há mais tempo, no dia 7 de abril deste ano. Apesar de as Forças Armadas não terem como função atuar na segurança interna, no subúrbio de Guadalupe, militares conseguiram disparar mais de 200 tiros contra um carro onde estava o músico Evaldo Rosa dos Santos, sendo que 83 acertaram o veículo. Quando terminou a “operação de guerra”, Evaldo estava “mais do que morto” e um catador de papel que passava pela cena do “crime” estava ferido. Além de ridículos, eram péssimos atiradores.
Percebeu por que o decreto do governo federal, apesar de trazer apenas coisas óbvias, é absolutamente necessário para disciplinar as atividades policiais? É preciso reposicionar a atuação das forças de segurança para proteger a população das próprias polícias e até mesmo reduzir os riscos que os policiais correm ao serem investidos pela sociedade como “xerifes” com direito de matar.
E, queiram ou não os mais radicais, é preciso garantir aos criminosos o direito de serem julgados pelo Poder Judiciário, e não executados por “juízes” armados.
É óbvio.
> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 49 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 23 anos.