Da esq. p/ a dir., meus avôs Antenor Matheus (paterno) e José Padial Esteves (materno). Fotos / Arquivos das famílias

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

Surgi para a luz em uma época que as pessoas eram valorizadas pelas funções que desempenhavam. Os braçais faziam o seu penoso trabalho, os medianos prestavam serviços nas repartições, escritórios e comércios, enquanto os letrados cuidavam de todos.

E todos pareciam estar muito à vontade nos seus papéis. Conformados? Não. Mas havia espaço para todas as tribos. Todas eram admitidas e, de certo modo, respeitadas.

Você irá me questionar, com certeza: “Então não havia a luta de classes, todos estavam satisfeitos com os seus lugares?”. Boa questão. Longe de mim enveredar por análises sociológicas e comportamentais.

Este espaço aqui é sempre um bate-papo com o leitor, aquela conversa puxada de repente quando os grandes temas –tempo, jogo do time no fim de semana, trânsito, crimes– já foram devidamente repassados.

A propósito deste Dia dos Avós que comemoramos na segunda-feira, 26 de julho, vou retornar à minha infância quase uterina. Lembro de uma numerosa família paterna, da qual eu vivia próximo, e de uma família materna mais dispersa. Mas vou me fixar nos meus avôs.

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Meu avô paterno se chamava Antenor Matheus. Nasceu em São Simão, estado de São Paulo –a mesma cidade, descobri depois, em que nasceu o nosso multitalentoso Altino Bondesan–, mas viveu quase toda a vida em Minas Gerais, até que retornou a São Paulo para morar na Vila Ema, bairro da periferia na zona sul da Capital, colado à Vila Prudente.

Lembro dele indo para o trabalho e voltando no início da noite, usando terno, sem gravata, óculos que lhe davam um ar austero e, inesquecível, uma grande bolsa preta, de couro, de bom gosto, onde ele transportava não sei o quê. Profissão? Metalúrgico. Trabalhava no Ipiranga, bairro operário da mesma região.

Ele vivia em uma família em que a matriarca, minha avó Maria Francisca, lhe deixava pouco espaço. Mas nunca reclamou e sempre cumpriu o seu papel. Aposentado, morando em Rudge Ramos, bairro de São Bernardo do Campo entre a cidade e a Capital, ocupava seus dias com várias tarefas. Plantava hortas e cuidava delas; produzia ferramentas em uma pequena oficina onde uma grande bigorna e uma morsa antiga faziam brilhar os olhos dos netos; consertava tudo o que quebrava na casa de muito filhos e filhas.

Quase no fim da vida, vendeu bilhetes de loteria. Além disso, sua tarefa mais comunitária na casa era acordar bem cedo, bem antes das seis horas, ir comprar leite, três ou quatro bengalas de um pão delicioso –o pãozinho francês não fazia sucesso na época– e preparar café bem quente para os filhos e filhas que sairiam para trabalhar. Tudo ao som do indefectível programa de rádio do Zé Béttio, sucesso popular naqueles anos 70. Acho que, à sua maneira, foi feliz.

Vamos viajar um pouco, sem nos afastarmos muito. São Caetano do Sul, distante talvez entre 10 e 20 quilômetros daquela Vila Ema onde eu também morava com a minha família no início dos anos 60, entre três e oito anos de idade.

Lá em São Caetano estava o espanhol José Padial Esteves, nascido em Madri exatamente em 1900, daí eu nunca ter esquecido o ano. Veio da Espanha, conheceu a futura esposa Maria Garcia Benites no navio, casou-se e foi substituir a mão de obra escrava sob o enganador título de “política de colonização” via atração de estrangeiros.

Trabalhou, fez família, sofreu pelas fazendas do Interior paulista, até que desembarcou em São Caetano do Sul no início da industrialização do país, especialmente, naquela cidade, com as indústrias do italiano Francisco Matarazzo.

Profissão do meu avô quando eu o conheci: vendedor de sorvetes e doces com um carrinho da Kibon em um grande terminal de ônibus urbanos colado à estrada de ferro que ligava São Caetano à Capital. Lembro perfeitamente do uniforme do meu avô materno: um jaleco imaculadamente branco, com um Kibon bordado que, compondo com a barba e o bigode imaculadamente brancos, faziam dele uma espécie de anjo que me recebia, junto com meus irmãos Roseli (já falecida) e Ricardo, com doces, sorvetes e abraços calorosos.

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Você vai dizer: e daí? Ok. Quero dizer que meus dois avôs –e penso que estou representando neles os avôs de muitos de vocês– tinham profissões modestíssimas, tiveram pouco estudo formal, não tinham grandes posses ou propriedades, viviam em lugares modestos, mas esbanjavam dignidade, firmeza, liderança, maturidade, segurança e exemplos para os seus filhos e netos.

Você pode dizer ainda: e daí? Ok, repito. O que eu quero finalmente dizer é que nós temos muito o que aprender com as gerações passadas quando se trata de definir os nossos planos para o futuro.

Em vez de pensar no chamado “top”, por que não pensar no “médio” da felicidade, da tranquilidade, do equilíbrio, da dedicação à família, da convivência com os vizinhos?

Com todas as dificuldades, derrotas, tropeções que tiveram na vida, meus dois avôs vivem até hoje na minha memória afetiva. Eles me dão força, fé e segurança para enfrentar o que tem vindo na minha direção nesses mais de 60 anos de caminhada.

É exatamente o que eu penso que nos falta hoje em dia: valores. De que adianta dar “tudo” para o seu filho ou para o seu neto, se eles nunca irão lembrar de você pelos valores que lhes transmitiu? Pense francamente, qual vai ser a memória que vai deixar para que eles lembrem de você?

A memória que eu tenho é muito clara. Tive dois avôs pobres, dignos, de profissões humildes, mas extremamente carinhosos, atenciosos e simples. Enricaram? Não. Mas enriqueceram de tal maneira as minhas lembranças que estão até hoje, eu aos 63 anos de idade, me inspirando quando preciso decidir o que fazer.

Os velhos nos ensinam a viver. Ignorar suas lições é uma grande bobagem.

 

> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

 

*Texto atualizado às 11h17 do dia 31/7/21.