Li com uma mistura de sentimentos a crônica-crítica do colega Wagner Matheus –”Não passo ‘paninho’ para a imprensa” (aqui no portal)– sobre o destrambelhamento despudorado de algumas (ou muitas) pautas de um portal de notícias famosão, filhote crescido de um jornalzão que tem história no país.
Eu lia um parágrafo e pensava: “— Mas, cara, e a liberdade de imprensa e expressão?”
Lia outro e concordava: “— Tá certo, é exagero. É muito sexo e swing para um veículo só, ainda mais misturado com religião e em busca de likes.”
Na linha seguinte eu mudava de ideia, de novo. Cheguei ao fim do texto sem encontrar o rumo da prosa da minha opinião. Fiquei pensando de quem seria a responsabilidade disso tudo? Esses excessos nos canais informativos se devem a quê? Eles interferem na vida das pessoas e na formação das crianças?
Sou assinante do portal em questão, mas sempre passo por outros, por vício e necessidade de ampliar horizontes sobre assuntos atuais. Assim, dediquei algum tempo flanando pelos grandes portais de notícias com atenção para o direcionamento de cada um.
Sexo e likes à parte, difícil achar um conjunto de informação relevante em qualquer deles. Na salada mista de títulos chamativos, não faltam culto ao corpo, política e religião com abordagens que até fazem de um trisal boa pauta para discutir, em família, a amplitude do amor.
A meu ver, todos entregam exatamente o que a maioria da população, ou seu nicho, busca. É antiga a pendenga de apontar a imprensa e a cultura em geral, como incentivadoras, ou culpadas diretas, pelo despudor, falta de ética, respeito com os mais velhos, etc., da sociedade.
Eu discordo. Os veículos de imprensa, as peças teatrais, as novelas, os filmes, são, antes de mais nada, espelhos da sociedade. Refletem comportamentos e preferências de massa. Influenciam também? Certamente, mas é uma via de mão dupla, agora em velocidade alucinante por conta da rede mundial de internet.
Agora é você que discorda? Ok. Vamos dar uma olhada no clipe mais famoso da Anitta, “Envolver”, que quebrou a banca da audiência musical chegando em pouco tempo ao primeiro lugar do Spotify mundial e, atualmente, já ultrapassou os 160 milhões de visualizações no YouTube.
Assim que a música atingiu o topo, os vídeos de pessoas repetindo os movimentos da bunda poderosa se espalharam. Eu vi no mesmo dia uma senhora de mais de 60 anos e uma garotinha de 5, rentes ao chão, tentando reproduzir os movimentos sensuais, embaladas pela música com letra de fazer Madonna corar. Idosa e garotinha foram divulgadas e aplaudidas.
Desculpe, Anitta, nada contra seu retumbante sucesso. As pessoas recebem e aplaudem o que desejam. E nem vou falar do mendigo pegador transformado em celebridade.
Os navegadores, como o Google, têm sempre ferramentas de segurança para bloqueio de acesso a conteúdos que os pais e responsáveis considerem impróprios para crianças, mas quem usa isso se as telas viraram babás? Quantos ainda se sentam ao lado do filho para ajudar em uma tarefa de casa? Quem manda os filhos menores de 10 anos pra cama às 21h e desliga o wi-fi?
Eita que ela vai falar de educação de novo!! Ou melhor, da falta que a educação e um convívio familiar equilibrado faz. E não é que vou?
Só um sistema educacional ma-ra-vi-lho-so, integral, com merenda nutritiva, professores bem formados e bem-remunerados, poderiam reiniciar o HD coletivo.
Porque as crianças que recebessem essa educação entenderiam que é possível escolher entre qualidade e facilidade, seriam os pais do futuro. E poderiam ensinar seus filhos a escolher também. E então, portais de notícias com a qualidade baixa, com salada mista de matérias escatológicas e o roteiro da Semana Santa lado a lado, talvez morressem por falta do oxigênio das visualizações. Os leitores ansiariam por qualidade e os veículos teriam então que lhes entregar isso.
Os celulares não estariam à mesa durante as refeições. Crianças de 3 anos não teriam canais no YouTube. Os pais não filmariam menininhas reproduzindo a dança erótica de Anitta. Os aplicativos de relacionamento talvez deixassem de ser o principal lugar para conhecer alguém. A palavra “conteúdo” voltaria a ter seu significado dignificado pela profundidade.
Mas construir um mundo melhor, para adultos e crianças, é tarefa pra gigantes bem acordados e, por aqui, como sabemos, eles dormem em berço esplêndido.
Não apoio a falta de qualidade da imprensa, que desde o advento da internet vive com um cego em tiroteio. Não sabe pra onde correr. Mas também não passo pano para o descaso com que tem sido feita a construção da realidade que habitamos, por uma sociedade anestesiada para a vida real. Nossas escolhas pessoais ainda podem ser farol no aparente apagão de opções que as telas derramam sobre nós.
> Maria D’Arc é jornalista (MTb nº 23.310) há 28 anos, pós-graduada em Comunicação Empresarial. Mora na região sudeste de São José dos Campos. É autora do blog recortesurbanos.com.br.