Eram perto de 5h30 de domingo e o professor João Felizardo, ou Feliz, como conhecido, estava deitado no catre tosco de cantos arredondados ornamentados por abraçadeiras de ouro de tolo. Acordado, olhava pensativo para o teto da casa onde morava com a mulher e os dois filhos em Cruz das Almas.
Fazia frio naquele princípio de outono na cidadezinha de menos de dez mil habitantes no sopé da Serra do Pilão, entre São José do Novo Cedro e Campos Altivos, as coirmãs maiores, mais ricas e famosas.
Ainda chovia, mas nem tanto como de madrugada, quando uma tempestade castigou o lugarejo. Meia hora de chuva torrencial, com raios lambendo o céu, trovões assustadores e granizo regulando bolas de gude. A tormenta meteu medo no cruzalmense mais incrédulo e fez o crente agarrar-se a rezas e crendices ante o iminente fim do mundo.
Precedida de uivante ventania, a chuva caiu em bicas, por pouco não fazendo perecer o combalido telhado cerâmico da casa do docente. Uma rústica construção de duas águas, pequeno alpendre e janelas fechadas por tramelas, no final da rua das Corruíras, já vizinha do córrego Cambuquira, que corta a cidade.
Sem energia elétrica por causa da queda de uma velha sumaúma sobre a rede, Cruz das Almas virou breu. Luz? Só de velas e lamparinas.
Súbito, o sino da matriz de Nossa Senhora do Bom Remédio, padroeira da cidade, tocou em frenesi. Feliz pôs-se de pé como um corisco e tateou o criado mudo à procura do seu ômega ferradura. Correu para junto da janela e o exibiu para a fresta de luz tênue. Faltava pouco para as seis horas.
Por que o sino tocou tão cedo e amalucado antes de a noite sucumbir plenamente? –deu de perguntar o professor aos seus botões, enquanto cofiava o bigode ralo. Por certo foi o tonto do Zequinha que se confundiu, acusou.
Até hoje em Cruz das Almas a população acorda aos domingos com o tocar molenga do sino a cada quarto de hora a partir das sete horas, convidando os fiéis para a missa das oito. Ao soar naquele horário, bem cedinho, fez saltar uma pulga para trás da orelha de Feliz, que, açoitado pela curiosidade, ligou o desconfiômetro quanto a um mau presságio.
Faltando quinze minutos para as sete horas, Zequinha, o sacristão, saiu da casa paroquial onde mora num cômodo nos fundos, a cem metros da igreja, e desembestou como um bólido morro acima até alcançar a pequena porta de acesso à sacristia. Destrancou-a e entrou esbaforido abrigando-se da chuva fina e intermitente.
Fiéis por chegar, com o auxílio do vento ele abriu as pesadas folhas da porta principal da igreja centenária, fazendo o mesmo com as janelas e portas laterais. Depois, num feito incomum para um baixinho atarracado, saltou cada dois lances da escada de madeira de lei até chegar ao campanário. Lá, às sete em ponto, fez soar o sino.
Antes de ultimar os detalhes da celebração domingueira, espiou lá de cima a rua de acesso à igreja e viu grande grupo de fiéis subindo a ladeira sob a chuva, na calçada. Caminhava na contramão de uma pequena enxurrada que descia beijando o meio-fio, em chororô, na vã tentativa de sulcar a pedra dura do calçamento.
De volta à sacristia, Zequinha prognosticou para os próprios ouvidos, enfatizando cada palavra: a missa vai bombar! E bombou. A igreja ficou pequena para tanta gente. Metade para cumprir o preceito dominical; a outra, para saber por que o sino tocou enlouquecido antes de a noite virar dia.
Para desfazer o zunzum que se estabeleceu, só mesmo o padre, uma vez que o pobre sacristão também queria saber quem, antes dele, ousou surrupiar-lhe a tão distinta atribuição de badalar o sino da igreja. Então, o remédio é ir à missa!
[Continua…]
> Carlos José Bueno é jornalista profissional (MTb 12.537). Aposentado e no ócio, brinca. Com os netos e as palavras.
*Atualizado às 15h31 do dia 23/6/2021 para acrescentar que se trata do primeiro de uma sequência de contos com o mesmo tema.