Estava vendo as notícias do UOL, como faço várias vezes por dia, quando me deparo com a foto de duas atletas se beijando em um cenário que parecia o pódio de uma premiação. Imediatamente, parei na notícia para saber do que se tratava. Um escândalo? Um ato de protesto?
“Como eu sou ridículo”, pensei logo em seguida. Por que um casal formado por duas moças felizes da vida, se beijando com amor e naturalidade, teria que ser algo fora do comum? Desta reflexão, veio a ideia para a crônica a seguir.
A foto em questão mostra as jogadoras Ana Carolina da Silva e Anne Buijs, da equipe de vôlei do Praia Clube, de Uberlândia (MG), comemorando a conquista do título sul-americano de clubes. Como elas são um casal, nada mais natural que se beijarem para festejar. Certo?
Cenas como esta são a cada dia mais comuns e nós devemos encarar tudo isto como coisa normal. Não só cenas como esta, mas outros costumes que a sociedade vai adotando para acomodar suas lutas e conquistas. Fazem parte deste novo normal situações como: a mulher chefiar grandes equipes masculinas nas empresas; a mulher ganhar mais que o marido; o homem ser sensível e amoroso; o idoso ou idosa se casar com alguém 20 ou 30 anos mais jovem; a mulher falar palavrão e beber quase tanto quanto um homem beberrão; uma mulher governar um país; um transexual trabalhar normalmente em qualquer atividade e local; crianças terem opinião própria (não confundir com birra); idosos preferirem morar sozinhos a viver com a família; e por aí vai…
Esses novos tempos assustam um pouco, é claro, porque representam rupturas com o mundo no qual fomos criados. Quanto mais idade você tem, mais essas mudanças chamam sua atenção. Mas sugiro a você: “aceita que dói menos”. Você não vai conseguir reprimir as mudanças, elas fazem parte de um processo social coletivo. Colocar-se contra o que está acontecendo –e mais o que virá por aí– só vai transformar você em uma pessoa amarga, reacionária, derrotada e, em alguns casos, com problemas com a Justiça.
Vamos fazer um exercício de regressão. Não precisa ser a vidas passadas, outro hábito que já foi moda. Basta ir à infância e início da adolescência. Você vai daí e eu vou daqui. No meu caso, quando comecei a me entender por gente, o mundo era totalmente outro. Exemplos: a maior rebeldia dos jovens era usar cabelo comprido; as meninas ousavam com minissaias; homem saía com prostitutas com a maior naturalidade; mulher sofria no casamento, no trabalho, na vida –e parecia normal que sofresse; escola era respeitada quase como um templo sagrado, com seus professores, diretores, inspetores etc. como seus sacerdotes; tio era chamado de senhor e recebia beijo na mão junto com o pedido de benção; menina não falava palavrão; adolescentes não chegavam tarde em casa; sexo era uma coisa quase proibida, apesar de muito praticada; e por aí vai…
Percebeu? Quem começou a vida em um mundo como aquele, do final dos anos 60 para o início dos 70, tem tudo para se sentir um ET no mundo de hoje. Um ET velho e cansado. E pode ficar tentado a sair disparando preconceitos, iras, ofensas e violências contra o mundo, a começar pela família.
Nada disso vale a pena. Até porque nada disso funciona. O mais sensato é procurar compreender que a sociedade é um grande organismo vivo, pensante e sensível. Esse organismo vai ocupando novos espaços, criando novos costumes, mudando regras, se desenvolvendo. E por mais que a gente se assuste, isto se chama evolução.
Vou te contar dois exemplos que sempre vêm à minha cabeça quando resolvo pensar “no meu tempo” e no “hoje em dia”. Não sei se é só comigo, mas você que tem mais de 50 já percebeu que os cachorros de antigamente eram quase todos bravos, latiam por quase nada, corriam atrás das crianças pelas ruas e não só ladravam, mas mordiam pra valer?
Os cachorros de hoje quase nem têm mais este nome, são os pets, que todos adoram com suas gracinhas, sua educação, seu amor aos donos e respeito às pessoas. Sou um leigo nisso, mas vou arriscar uma explicação: os tempos mudaram, e os cachorros, que eram maltratados, deixados dormindo ao relento e comendo sobras, passaram a ser respeitados e bem tratados. Resultado: eles mudaram para melhor.
Quer ver uma outra coisa? Os bebês de hoje, a não ser que estejam seriamente doentes, são risonhos, espertos, desinibidos e, incrível, quase não choram. Percebi isto novamente nesta segunda-feira quando fui me vacinar contra a gripe na UBS aqui da região. Havia quatro ou cinco crianças com as mães, algumas com os pais também. “Nenhum pio”, como se dizia antigamente. E mais: elas interagiam entre si praticamente sem depender dos adultos. No meu tempo, entrar em um ambiente com bebês era participar de uma sinfonia de choros diversos que não acabavam nunca. Algo muito importante aconteceu no universo infantil, mas confesso que não vou me arriscar a explicar esse tipo de novo normal.
Exemplos fracos? Não sei. Mas você vai concordar que eles mostram mudanças que uma sociedade vive em um intervalo de meio século. Mudam os hábitos, mudam as regras e as leis, mudam os próprios organismos para se adaptar a novos tempos. Basta lembrar que existe idoso de 90 e poucos anos que, nos dias de hoje, leva uma vida mais ativa e feliz do que os “idosos” de 50 a 60 dos meus tempos.
É claro que não é fácil a gente aceitar tudo –nem precisa e, em muito casos, talvez nem deva–, basta respeitar a todos. Por exemplo: não preciso adotar a tal linguagem neutra, que ensina a chamar “todos” de “todes”, mas também não preciso me transformar em um troglodita quando ouço alguém usando; não preciso beijar alguém do mesmo sexo na boca, mas também não devo me ofender com isso desde que isso não seja um atentado ao pudor, quer de origem homo ou heterossexual; enfim, não devo querer que todos pensem e ajam como eu.
Mas tem gente que não aprende. Nesta mesma semana, o tal Bruno, da dupla sertaneja Bruno e Marrone, resolveu ser “engraçado”, “espontâneo”, “direto”, e perguntou a uma repórter transexual, antes de uma entrevista séria e profissional, se ela tinha pau. Resultado: dias depois tentou se desculpar com uma conversinha pouco convincente, mas tudo indica que vai ser processado e pagar uma indenização à vítima. Tudo por ser um cara “autêntico”.
Finalizo estas reflexões voltando lá ao início, à foto da Ana Carolina e da Anne se beijando no pódio. Sabe quando nós estaremos realmente adaptados ao novo normal? Quando uma foto dessas for publicada e ninguém ficar admirado, assim como eu fiquei; quando a legenda não precisar mencionar que elas estão se beijando, afinal a imagem é clara e autoexplicativa. Finalmente, quando o editor do UOL não escolher a foto do beijo, provavelmente, por achar que ela irá provocar um grande impacto por mexer com o preconceito e a indignação de muitos leitores.
Moral da história: os tempos mudam e, ou mudamos com eles, ou morremos –metafórica e, um dia, literalmente.
> Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 46 anos. É editor do SuperBairro. Mora na Vila Guaianazes há 22 anos.
>> Texto atualizado às 17h13 do dia 18/5/23 após revisão ortográfica e de estilo.