Ilustração / Reprodução

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

E aí me ocorreu, quando quase fui atropelado por tresloucado ciclista, outro dia, que eu tinha um anjo da guarda. Anjo da guarda sim, aquele do retrato que ficava na nossa cabeceira quando éramos crianças; o meu de um jeito, o de meu irmão mais velho de outro, as meninas os seus, cores diferentes, cada qual com seu anjo.

E era para o anjo da guarda que eu e meus irmãos rezávamos todas as noites: “Santo anjo do Senhor, meu zeloso guardador, que me rege, guarde e ilumine, amém”.  Em seguida: “Com Deus me deito, com Deus me levanto, com a graça de Deus e do Divino Espírito Santo.” E nem ajoelhávamos para rezar e, quando não rezávamos, minha mãe, de notável espírito prático, certamente fruto de seu meio sangue germânico, rezava por nós em voz alta e pronto: estava rezado e silêncio!

Aí fico pensando, um pouco envergonhado de só agora, no meio da vida, me lembrar novamente do “meu” anjo da guarda. Coitado, o que o pobre não passou durante todos esses anos! De quantas não me livrou e eu acreditando ter me safado por sorte! Comeu o pão que o Diabo amassou… Ops! Perdão, Jesus. Espero que o meu anjinho não fique triste, pois sempre tive muito carinho por ele… pelo menos enquanto me lembrei de sua existência.

E é reconfortante hoje saber que sempre esteve lá, a postos, na sua incumbência divina de me proteger dos riscos da vida –e viver é perigoso, como disse o caboclo de Guimarães Rosa–, com aquelas asas imensas, braços e mãos estendidas, aquela cabeleira encaracolada e loira, “rosto de anjo”… Gozado −eu pensava quando menino− por que não havia anjo da guarda pretinho, mulatinho, japonês, como meus amigos? Como eles faziam? Será que eram também escurinhos, olhos puxados? Nunca vi nenhum retrato assim. Sem resposta.

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Certa vez, li que os anjos da guarda velam pelas pessoas e cuidam para que não se inclinem para o mal, sempre para o bem.

─ Ora, Anjo, você nem sempre foi muito feliz nisto. Quanta maldade não cometi como menino, assaltando ninhos de passarinhos, matando criaturinhas indefesas, esmagando joaninhas, furando o olho de sapo, prendendo moscas em copos.

A gente se divertia, acreditem, tirando uma das asas da mosca e fazendo-a girar, girar, girar… E ríamos muito, absolutamente insensíveis ao sofrimento dos bichos. Criança pode tudo.

Dizem que até os animais têm lá sua alma e que um dia também participarão da redenção e do paraíso. Tenho cá minhas dúvidas, mas são criaturas de Deus e levo comigo esta culpa. Anjo da guarda de criança fica tonto, é um período trabalhoso e sobressaltado. Vejam: tira o estrepe da frente do pé, segura o endiabrado na beira do barranco, não deixa o papagaio de papel enroscar no fio de eletricidade, faz o carro apenas tirar uma fininha…

Quando eu era menino, na velha São Paulo, era o bonde. De vez em quando vinha a notícia de que um sexagenário (naquele tempo era assim que saía), na Rua Xavier de Toledo, fora colhido pelo bonde. Terrível! Hoje é mole, atropelamento nem mais o jornal noticia, nem o rádio, muito menos a televisão. É sequestro, queda de avião, roubo a bancos, coisas mais espetaculares. É o que interessa à mídia. Os coitados dos atropelados agora nem têm mais espaço. Morrem e pronto, sem obituário nos jornais, nem mesmo falação. Anônimos. Sinal dos tempos… E o anjo da guarda falhou. Mas será que anjo da guarda falha? Ou ele tem um limite?

APOIO SUPERBAIRRO

John Kennedy, um católico descendente de irlandeses, certamente tinha um anjo da guarda, loiríssimo e branco, altivo e heroico, daqueles que até têm espada (ou será que é somente a do arcanjo Gabriel?). Pois bem, não é que o bendito falhou naquele dia em Dallas? Onde estava o anjo? De férias? A esperança do Mundo Livre foi-se num miserável tiro, miolos espalhando e cadê do anjo?

Não sei, tudo tem regra, e acredito que também ele tenha uma espécie de manual dado por Deus do que pode e do que não pode livrar o protegido. Se é para o bem de todos, ele some, sai-se com esta: fui atender a um chamado da Chefia, enfim o “guardado” que se dane… São os desígnios de Deus, insondáveis.

Porém, bem lembrando agora, o meu anjo da guarda sempre esteve firme no pedaço. Hoje, nesta idade mais madura, vejo de quantas me salvou, e nem todas posso aqui revelar, mas se pode ter uma boa ideia. Qualquer dia desses volto ao assunto.

– Anjo, estou em débito com você, mas fique aí pelo menos por mais um tempo, que muita coisa ainda virá. E vou voltar a rezar!

 

José Roberto Fourniol Rebello é formado em direito. Atuou como juiz em comarcas cíveis e criminais em várias comarcas do estado de São Paulo. Nascido em São Paulo, vive em São José dos Campos desde 1964, atualmente no Jardim Esplanada. Participou do movimento cultural nascido no município na década de 60.