Foto / Pixabay

Wagner Matheus é jornalista (MTb nº 18.878) há 45 anos. Mora na Vila Guaianazes há 20 anos.

Foi por um mensageiro que padre Laurindo saltou da cama na madrugada chuvosa e fria daquele domingo.

De capa e chapéu de boa aba, o homem simples no umbral, empregado da fazenda Grotão dos Pássaros, trazia um bilhete conciso, nada mais a acrescentar. A não ser o que de todos era sabido na propriedade dos Conceição. O patrão tinha se machucado gravemente num rodeio de touros.

Escritas em folha de brochura arrancada às pressas e sem jeito, as poucas linhas encareciam ao sacerdote ministrar ao pobre Tobias a extrema-unção, como forma de remir os seus pecados e branquejar a sua alma, caso perecesse.

Prestativo, o religioso saiu ligeiro, depreendendo da parca missiva que o infeliz estava na iminência de bater com o rabo na cerca. Também levava em conta a necessidade de voltar a tempo de celebrar a missa das oito.

Enfiou na cabeça o chapéu de feltro que tirou do cabideiro; e sobre os ombros esparramou um baixeiro, na inútil esperança de não se encharcar. Depois de tocar o sino, entrou no seu velho e fumacento Volkswagen e pegou a sinuosa estradinha de asfalto casca de ovo rumo a Novo Cedro, onde o peão agonizava.

No hospital impôs-lhe as mãos e tocou-lhe a fronte com o óleo sagrado, enquanto recitava oração pertinente. Soube pelos médicos do estado periclitante do paciente e pegou o rumo de volta, macambúzio.

Estava desapontado; surpreso, não! Aquele teimoso bem poderia estar livre disso. E não foi falta de aviso!

No Rodeio dos Valentes, em Vista Bela, no outono passado, padre Laurindo o aconselhou a parar de montar. Argumentou sobre o risco, ainda mais para alguém com idade acima dos trinta, sem força, equilíbrio e destreza suficientes para ficar por intermináveis segundos no espinhaço de um animal em fúria.

E fez ver ao paroquiano que ele não precisava se expor ao perigo desmedido à guisa de ganhar dinheiro, pois dispunha de vida financeira próspera. Palavras ao vento.

Tobias tinha bem uns quinze anos no trecho. Começou no lombo de cavalos chucros e bois mau humorados na fazenda. Tomou gosto pela adrenalina que a montaria proporciona e acabou nas arenas do Meio Oeste do estado como profissional de rodeios.

Dele não se podia dizer que grudava no dorso do animal e nos corcoveios flutuava, para delirar o público e convencer o jurado; mas também não lhe era justa a pecha de abeia.

Naquele sábado em Novo Cedro a noite era agradável; e o luar, dos namorados. Meia hora antes do show começar, uma bolinha de cor viva deslizou suave do orifício do globo transparente, selando, por sorteio, o destino de Tobias.

A indicação aleatória do touro Capiroto como sua montaria deixou o cowboy de Cruz das Almas pensativo. De má fama, o mestiço pesava mais de uma tonelada, tinha guampas poderosas e pulava alucinado, acossado pelo sedém.

Mas, nada que lhe metesse medo. Longe disso! Ao contrário, enxergou além das dificuldades, como a chance de sair do ostracismo, de ganhar fama, prestígio; e até um bom dinheiro.

Na prova de montaria em touros, oito segundos separam o cowboy do ápice. O animal precisa fazer a parte dele: pular, corcovear, escoicear, saracotear. Como se tivesse o diabo no corpo. Capiroto era garantia disso e mais um pouco. Nunca tinha negado a fama e o nome.

Uma reza rápida, um sinal da cruz, um beijo na medalhinha da Virgem do Bom Remédio, e lá foi o peão para o dorso do bicho, já indócil no brete.

Quando a porteira se abriu o touro saiu bufando, pulando e sacolejando. Sobre o pelo do animal enlouquecido, o intrépido Tobias se segurava como podia. De repente o peão voou para beijar a poeira da arena. E antes que pudesse se esgueirar, o bruto escoiceou-lhe a cabeça protegida apenas por um Nevada bege. Um golpe violento, letal.

Restou no chão o corpo inerte. Nas arquibancadas, silêncio. Acabou o sonho para o cowboy de Cruz das Almas.

 

[Continua…]

 

> Carlos José Bueno é jornalista profissional (MTb 12.537). Aposentado e no ócio, brinca. Com os netos e as palavras.