Depois de seguidamente perder para a secura do tempo as roças sustento da família, Joaquim Bueno, meu pai, deu um basta. Passou nos cobres o pequeno sítio na cidade que mais tarde viria ser a Capital do Içá, pôs a mobília no caminhão e deu adeus ao sertão aonde tinha nascido e vivido havia 40 anos. Era o ano de 1954.
Foi a decisão mais difícil de sua vida. Mas, com mulher e filhos, o mais novo com dois anos de idade, tinha que recomeçar em outro lugar mesmo não sabendo fazer outra coisa a não ser lidar com a terra.
Foi assim que, triste, mas confiante na Providência Divina, o roceiro abandonou a terra inóspita, de onde só brotavam saúvas –conforme escreveu o escritor Monteiro Lobato, que também teve terras por aquelas bandas– e pegou a via Dutra com destino a São José dos Campos.
Aqui contou com a ajuda de uma boa alma para morar de aluguel numa casa simples à margem de uma estrada de ferro desativada, onde hoje se localiza o Paço Municipal. Acostumado com o duro trabalho no campo, não teve dificuldade para achar emprego na construção civil.
Três anos depois estava batendo ponto no então Centro Técnico Aeroespacial (CTA); e tinha se mudado para uma casa maior e melhor, comprada com a sobra do dinheiro da venda do sítio e de muitas e suadas economias.
Como não teve oportunidade de estudar, na divisão de materiais do CTA desempenhava tarefas comezinhas. Mas, com sua frequência, pontualidade e zelo granjeou a confiança e amizade do departamento, inclusive dos superiores militares.
Homem simples, “seu” Joaquim exibia outras qualidades. Sincero, não tinha tramela na língua para defender suas convicções, além de ser um esgrimista da política, que pelo rádio acompanhava desde os tempos do grotão, ouvindo os comentaristas do Rio e de São Paulo. O que talvez lhe tenha valido a peça a seguir.
Principiava 1969, a tinta da assinatura do presidente Costa e Silva sobre o AI-5 ainda estava fresca, quando aquele ex-agricultor foi chamado numa sala do prédio em que trabalhava onde estavam um civil e dois militares, entre os quais um major, todos do seu relacionamento. Para ele, conversa de fim de tarde, frívola.
Começaram puxando dele o fio do novelo da vida na roça, passando por sua migração para São José dos Campos, suas dificuldades para recomeçar, os embates políticos entre Jânio Quadros e Adhemar de Barros…
Empolgado, o janista roxo até aproveitou para recitar pausadamente o que um dia foi hino antiadhemarista nas campanhas pelo poder político em São Paulo.
–– Piu, piu, piu meu irmão, quem gosta de galo velho é panela de pressão.
Risos. E a conversa continuou animada até que, entre um cafezinho e outro, alguém malandramente quis saber sua opinião sobre o governo instalado no Brasil em 31 de março de 1964. Aí o pau cantou!
Num sincericídio arriscado para tempos tão bicudos, “seu” Joaquim falou cobras e lagartos dos generais presidentes. Tachou-os de impostores e despreparados; que, se pretendiam conduzir os destinos do Brasil deveriam antes abandonar a farda e se submeterem ao voto popular; e blá, blá, blá.
Ao término da fala inflamada, o major pigarreou e se arrumou na cadeira, depois tirou da gaveta semiaberta um gravador, pôs sobre a mesa e deixou o interlocutor ouvir a voz irada. Em seguida comunicou-o de que, por dever, teria que mostrar a fita para o superior hierárquico.
Após breve e tumular silêncio e dado a estupefação do destramelado, os presentes se entreolharam e caíram na risada. A arapuca não passou de um chiste, mas, naquele dia, temendo perder o emprego e até ser preso, “seu” Joaquim viu a viola em cacos.
> Carlos José Bueno é jornalista profissional (MTb nº 12.537). Aposentado e no ócio, brinca. Com os netos e as palavras.